Quando ainda era menino, na pequena e pacata Vigia, cidade do nordeste paraense, localizada na região onde os rios encontram o mar, Sandro Barbosa percebeu que a vida vai muito além do jardim e as oportunidades aparecem pra lá de onde os olhos alcançam. Então ele saiu da terra natal, veio para Belém, foi daqui para o Brasil e ganhou o mundo.
De volta ao Pará, engenheiro civil com sólida formação e vasta experiência, Sandro virou referência para empreendedores e profissionais da área. Justamente no tempo em que é preciso sair da zona de conforto e enxergar além do horizonte para sobreviver neste ambiente sem fronteiras em que todos vivemos. Por conta disso, foi chamado para dar palestras na XIV Feira da Indústria, atuando em um dos pontos de encontro mais movimentados do evento: o Summit Sebrae. Foi lá que ele conversou com a REDEPARÁ sobre o futuro da construção civil com a chegada da indústria 4.0.
O que muda na construção civil com a 4ª revolução industrial?
A partir de agora, você tem muito mais acesso às tecnologias. Consegue estabelecer parcerias que permitem internalizar ferramentas, metodologias e conceitos, característicos desse novo tempo, no plano estratégico dos projetos e no plano executivo das obras. Pela primeira vez, essa possibilidade está de fato acessível. Além disso, a construção civil precisa perceber que a indústria 4.0 chegou de forma definitiva.
Já existe essa percepção no Brasil?
Aqui, como sempre, há um descompasso com os países mais desenvolvidos, onde a indústria 4.0 já é uma prática. A boa notícia é que, nesse cenário, tanto o pequeno como o grande empreendedor têm oportunidades. O uso da inteligência artificial vai integrar toda a cadeia da construção civil, e com isso permitirá a otimização dos processos. Só no Brasil, existe a expectativa de uma economia de 78 bilhões de reais com a chamada 4ª revolução industrial. A construção civil está inserida nesse contexto. É um setor extremamente carente de melhoria nos processos, na gestão e no viés operacional. Mas temos todas as condições de assimilar as novidades para aumentar a produtividade e a nossa competitividade.
Uma das características dessa revolução é a convergência de novas tecnologias. Mas às vezes dá impressão de que, na construção civil, essas tecnologias ainda não chegaram. Ou estou enganado?
Não, você não está enganado. Na grande maioria dos projetos, a gente ainda constroi como se construía na época medieval. Não seria estranho se encontrar um cavaleiro templário tecendo o concreto de uma obra, se me permite a metáfora. A novidade no setor são as empresas que realmente industrializam a construção.
Por exemplo...
Nós temos o exemplo da K-Terra, nos Estados Unidos. No Brasil, nós temos a Casa Verde, que produz casas prontas. Aqui mesmo, em Belém, há o caso da construção enxuta, uma inovação desenvolvida pela Brasilit, com cursos disponíveis na capital paraense. Hoje, já se percebe esse movimento. É claro que é preciso vencer os obstáculos da mudança, para internalizá-las. Ainda é pouca a efetividade nessa industrialização, mas a gente vê um caminho sendo consolidado.
O setor público é um dos maiores contratantes da construção civil. Mas será que o setor público está acompanhando essa evolução?
O setor público acompanha, só que num descompasso um pouco maior do que o setor privado. No setor privado, existe uma gestão mais efetiva. Mas já se observa um movimento em prol da profissionalização da gestão e da implementação de algumas tecnologias no setor público. Eu trabalhei em um projeto em São Paulo, que era a despoluição do Rio Tietê, onde foram aplicadas tecnologias de ponta para fazer o sistema de esgotos. Ou seja: onde existem condições para avançar, o setor público está avançando.
A construção civil também é, no Brasil, balizadora do mercado de trabalho. Qual o impacto da indústria 4.0 no emprego do setor?
O que vai acontecer, não apenas na construção civil mas em todos os segmentos da economia, é que novos empregos vão surgir e a gente vai precisar de maior profissionalização, uma qualificação maior do profissional. Existe uma ideia generalizada, que tem de ser superada, de que o trabalhador, se ele não sabe fazer outra coisa, vai trabalhar na construção civil. Isso está mudando e a mudança vai se acentuar ainda mais com o advento da indústria 4.0.
Como isso vai ocorrer?
A gente vai perceber os produtos chegando cada vez mais industrializados e será preciso lidar com essa realidade em toda a jornada dos projetos. Isso vai impactar no emprego. Algumas especialidades vão deixar de existir e outras vão surgir. O objetivo é estabelecer níveis de produtividade muito maiores. A indústria do Brasil detém, hoje, apenas 25% da produtividade dos países desenvolvidos. Isso é inaceitável.
Neste cenário, o que é oportunidade e o que é risco para a construção civil?
O que é bom é que não dá mais para negar a necessidade de profissionalização das pessoas e da industrialização dos processos na construção civil. Isso é inevitável. Você vê, por exemplo, o caso dos taxistas, que ainda são resistentes aos aplicativos, mas isso é história, não tem como retroceder. Aconteceu e o mercado tem de se adaptar.
E o que é temeroso?
É a gente, nessa retomada do crescimento da economia, não ter capacidade para aproveitar a oportunidade e acabar aumentando o descompasso entre o que acontece aqui e o que acontece no mundo.
Como evitar isso?
Para não correr esse risco, nós precisamos ter políticas de longo prazo para, realmente, implementar um plano sustentável que atenda o mercado. Só o mercado brasileiro é suficiente para manter a economia, mas precisa ter alinhamento, ter longo prazo na estruturação desse projeto. Quanto mais a gente resistir, mais a gente vai perder o que seria um retorno de capital investido no setor público.
Você acha que esse debate já chegou ao canteiro de obras?
Não chegou. Mas a gente tem grandes oportunidades de melhorar essa cultura. Eu percebo essa preocupação mais efetiva na área industrial. Você pega por exemplo o setor de mineração, com níveis de segurança extremamente elevados. Você não trabalha ali se não tiver as luvas adequadas. Mas quando vai saindo da área industrial a gente vê uma exigência um pouco menor. Melhorou muito nas últimas décadas, mas é preciso dar mais celeridade a essa mudança, porque impacta num Brasil mais competitivo.
Quando você acha que essa disrupção será compreendida pelo operário que põe tijolo sobre tijolo?
A gente já viu várias ondas acontecerem. A gente viu a onda da qualidade com o PBQP-H (Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade do Hábitat, um conjunto de ações criadas para organizar o setor de acordo com os princípios de qualidade e modernização). A gente viu a onda de gestão de projetos. Muita coisa veio nos últimos dez anos. Quando se tem uma economia mais acelerada, existem recursos para implementar esses novos paradigmas. Na atual retomada econômica, ainda vai levar um tempo para incorporar as mudanças, mas esse tem de ser um propósito de todos: as entidades de classe, as instituições de ensino, as empresas públicas e privadas. Somente assim será possível transformar o Brasil em um país mais competitivo.
Essa necessidade já foi percebida pela academia?
Eu vejo isso mais nos ambientes de pós-graduação. Na graduação, ainda existe um hiato entre a academia e o mercado. Como há em quase todas as profissões. Em outros países esses dois ambientes são muito mais próximos. É importante avançar, porque é na academia que está a grande mudança, porque se você trabalha o profissional ele será um formador de opinião para buscar realmente a metodologia mais adequada e consolidar essa transformação, inclusive afetando as próximas gerações.
Quando você era estudante, como recebia as novidades?
Muitas vezes, assimilar as mudanças é quase um ato heroico. Eu costumava dizer que de cima para baixo é ordem e de baixo pra cima é motim. Eu fui muito amotinado. Percebi que sempre há grande resistência cultural diante do novo. Então, me propus a não lutar contra. Em vez disso, busquei sempre uma boa noite de sono para, no dia seguinte, ir adiante. Eu saí do Pará, fiquei um tempo no que a gente chama de trecho, trabalhando em grandes obras industriais, que têm um nível de gestão mais evoluído, e hoje me deparo com a seguinte questão: como trazer esse aprendizado para todos os níveis, efetivamente? A gente tem um povo que gosta realmente de trabalhar, mas precisamos qualificar esse trabalhador. Para mim, esta era e continua sendo a maior luta. É minha maneira de contribuir com a mudança.
O Brasil já foi o “país do futuro”. E agora, que o futuro chegou antes de a gente chegar nele? O que será do Brasil?
As regiões do Brasil tratam dessa questão de maneira difirente. A gente vê que o Sul e o Sudeste têm uma organização que permite implementar a inovação com mais rapidez. Nas regiões Norte e Nordeste, a diferença é maior. Mas a gente já percebe algumas ações pontuais, como esta, aqui mesmo, na Feira da Indústria, em Belém. Infelizmente, no todo, ainda está faltando um entendimento maior na busca das melhorias em produtividade e competitividade, em tecnologia e gestão, que serão capazes de alinhar o Brasil com o futuro da construção civil.
Você acredita em uma construção civil amazônica, caracterizada pelas nossas peculiaridades?
Muito se tem avançado nessa direção. Há projetos específicos aqui. O que é importante dizer é que hoje não existe mais o termo "segredo industrial". As coisas são de domínio público e a gente tem de se apropriar, customizar e entender qual a nossa vocação, para implementar isso. Nós temos, sim, uma identidade amazônica, mas existem práticas que devem ser estabelecidas e um plano de longo prazo para que, efetivamente, a indústria 4.0 faça bem também à Amazônia.
Entrevistador: Paulo Silber
Fotos: Pedro Batista