Em geral, jogadores de futebol fazem o que fazem por vocação. Bira era vocacionado para jogar e destinado a fazer gols. Com a bola, transmitia a alegria que sempre teve no coração. Ídolo do Remo e do Inter, ele foi xodó de muitas outras torcidas. Hoje é um ótimo contador de histórias, no melhor estilo "deixa a vida me levar". Mas, tanto no passado quanto agora, Bira também parece atrair polêmica por onde pisa.
Quando Dario, o Dadá Maravilha, veio para Belém incumbido de acabar com a alegria do Leão, que estava numa das melhores fases de sua história, o jogo de estreia foi justamente contra o rival. Bira fez logo o primeiro gol e foi tripudiar do novo adversário, pulando nas costas de Dadá. No mesmo jogo, Dario deu o troco. Mas no final da história, ao indicar o ex-rival, já então amigo, para a direção do Inter, Dadá foi taxativo: “Pode contratar, que ele é melhor que eu”.
Histórias inusitadas como esta estão no amplo repertório do conversador Ubiratan Silva do Espírito Santo, hoje com 64 anos, agora comentarista esportivo da Rádio Difusora em Macapá, um irreverente amapaense que veio para Belém virar ídolo e ganhou o Brasil como sinônimo de gol, chegando a artilheiro do Campeonato Brasileiro, bicampeão pelo Remo, invicto, bicampeão brasileiro pelo Inter, bicamperão mineiro pelo Atlético, entre muitos títulos. E só não pegou a Seleção Brasileira de Telê (sim, aquela mesma!) porque foi traído por uma contusão.
Sem querer, Bira esbarrou na marcação de dois jornalistas que o viram em campo, Paulo Silber e Carlos Ferreira, no restaurante Mineirinho. Logo onde? Na Curuzu. Foi de lá, nesse bate-bola, que ele mostrou que Bira mostrou que ainda é pop, e que Bira não poupa ninguém.
P- Sua história no futebol paraense valeu a pena?
R- Tudo vale a pena. Eu não trocaria a minha vida de futebolista por nada. Claro que eu tive bons e maus momentos, mas tive melhores momentos do que maus. Então, tem hora que eu nem durmo de saudade, mas vida que segue.
P- O que você faz hoje?
R- Estou igual a vocês, jornalistas, esculhambando os outros, porque agora eu sou comentarista da Rádio Difusora. Eu falo em cima do erro das pessoas. Antes, eu era criticado, agora eu critico. Mas tudo é com muita ética. Eu não sabia que era tão difícil ser comentarista!
P- Mas, além de criticar, você também elogia, não?
R- Sim, às vezes aparece um cara bom. Mas nem sempre resolve. Não posso dizer que o cara não joga nada, mas em determinado momento ali ele não foi bem e a gente diz. Mas se o cara for ruim eu critico mesmo.
P- Na sua época, Remo e Paysandu estavam entre os melhores do Brasil. O que mudou?
R- Empresário. Empresário só traz bomba. Em conluio com os dirigentes. Como é que eu vou trazer um jogador que eu não vi? O time do Remo, naquela época do Joubert, só trouxe o Edson Cimento, o Darinta e o Júlio César. O Cimento e o Darinta eram da Tuna e o Júlio César do juvenil do Flamengo. Só. Resgatou o Leônidas do Liberato. Eu tinha saído brigado do Paysandu. O China era da Aeronáutica. Dutra já morava aqui. Marinho era da Marambaia. Cuca era de Santarém. Então, o Remo só mesclava os melhores do Pará. Hoje eles trazem cada bomba. Não é justo gastar o que Remo e Paysandu gastam com perna de pau, eu não aceito. Não é justo com essas torcidas sensacionais.
Em pé, da esquerda para a direita: Marinho, Marajó, Dico, Dutra, Anderson e Clóvis. Agachados: Zezinho, Capixaba, Bira, Mesquita, Paulinho e Júlio César
P- Qual o interesse de trazer essas “bombas”?
R- Virou um negócio mal administrado. Como é que pode, com essas duas torcidas maravilhosas, os clubes paraenses estarem na série C e sempre a um passo da D. Isso é um absurdo. Eu não admito. Não admito! Remo e Paysandu faziam clássicos aqui que pelo amor de Deus. Agora, você vai ver o jogo e torce pra gente perder de pouco. Lá fora, os caras estão voando. No meu tempo não. Nós é que estávamos voando. Os caras faziam antidoping e não dava nada. Eu queria era vencer, de muito, e passar na casa do Manoel Ribeiro pra pegar o bicho.
P- Houve um tempo em que você recebia o bicho por gol feito?
R- Sim, eu recebia por gol. Aí, o Manoel de Nazaré Santana Ribeiro contou os cinco gols no Guarani, dois no Cruzeiro, dois no Palmeiras, dois no Brasiliense… Nesse dia eu fechei o Lapinha.
P- Depois de você, quem foi o maior artilheiro com a camisa do Remo?
R- Dadinho. Não gosta de mim. Não gosta de mim, já tivemos uma rivalidade, mas eu parei, a idade chegou e eu disse agora é você. Quando eu voltei para o Remo pra encerrar minha carreira, teve a partida do Remo contra o Paysandu. Aos 47 minutos, escapamos nós dois na frente do goleiro, eu estava livre. Éramos eu, ele e o goleiro, e ele não me deu a bola.
P- Mas pelo menos fez o gol?
R- Não! Chutou pra fora!
P- E perdeu o título...
R- Isso. Por causa dele, o Remo perdeu o título, e nós jogávamos pelo empate. Quando terminou, eu vou revelar pela primeira vez, ele foi agredido num mercado lá no Guamá. Aí perguntaram por que ele não passou aquela bola pra eu fazer o gol do título. Sabe o que ele falou? “Ah, o Bira só quer tomar cerveja, eu vou deixar ele ficar com a glória? Passou o ano bebendo e agora vai fazer o gol. Eu não dou bola pro Bira”.
P- E você nem bebia, né?
R- (Risos) Um pouquinho… Tinha vezes que terminava o jogo, o Joubert me chamava e dizia: “Bira, tem dez caixas de cerveja aí pra ti. Quando a gente via já era 10 da noite. Esse era o jeito Remo de ser. Esse negócio de bar da moda, nós não íamos. Boate da moda, nós não íamos. A gente comemorava era ali mesmo, depois do jogo. Às vezes até dormia ali.
P- Mas no Lapinha você ia.
R- Sim, mas no Lapinho o Alencar me dava um bicho extra… e as primas! (risos)
P- Você já disse uma vez que jamais existiu no futebol mundial um jogador mais caseiro…
R- É porque eu ia na Casa da Seresta. Na casa de samba. Na Casa da Noca. Então, sem dúvida eu era o mais caseiro. (risos) Afinal de contas, quem não se garante toma refrigerante (mais risos). Lembro de quando eu cheguei no Internacional. Em 79, dia 21 de setembro. Ganhei o primeiro jogo contra o Santa Cruz, eu fiz o gol. Quebrou o barraco. Nunca vi os jogadores beberem tanto, bebiam mais que os jogadores do Remo. Eu digo, porrra, em Belém existe esse preconceito com os jogadores. Nesse dia, lá em Recife, depois do jogo, o treinador perguntava: “vocês querem mais cerveja?”
P- Voltando para Belém: como foi a sua transferência do Paysandu para o Remo?
R- Teve uma pessoa que foi decisiva, que me aconselhou. Ele não vai ficar chateado porque ele mesmo já contou. Eu estive na casa dessa pessoa, na avenida José Malcher com a Benjamin Constant. Cheguei com o Roberto Bacuri, Roberto Batista de Paula, o Bacuri. Eu mostrei pra ele, olha eu tô com isso aqui. O Manoel Ribeiro tinha me adiantado 6 mil reais para eu ir pro samba. Contei que o Ribeiro queria me levar pro Remo. O que tu achas?, eu perguntei. Ele me disse “Vai, porque no Paysandu tu não vais jogar, porque tem Walfrido, tem Lula, tem Marciano, Nilson Diabo”, ele falou. “Então vai te embora daqui, que aqui tu não vais jogar”, Eu praticamente fui expulso do Paysandu.
P- E foi bem recebido no Remo?
R- Quando eu cheguei no ginásio Serra Freire, o saudoso Bosco Moisés me chamou e me deu um camarote pra eu ficar do lado da bateria do Rancho no carnaval. Eu perguntei: mas por que isso? E ele me contou: “Fui eu que te dei o dinheiro pra tu passares pro Remo”.
P- O Manoel Ribeiro foi só portador...
R- “Fui eu que dei”, ele me disse. Eu perguntei: e agora? E ele: “Agora pega aquele camarote e pede o que tu quiseres, que tu já és nosso”. Eu fui escorraçado do Paysandu e na primeira noite no Remo eu ganho um tratamento desses!
P- Você imaginava que ia fazer no Remo o que fez?
R- Sempre acreditei. Depois eu soube que foi o Joubert quem falou para o Manoel Ribeiro: “traz aquele crioulo, que ele é o novo Alcino”. (Joubert Meira foi zagueiro do Flamengo de 1955 a 1964, e depois que virou técnico revelou Zico e… Bira)
P- É verdade que o Joubert fazia hora extra pra ensinar você a cabecear?
R- Verdade. E não tinha hora pra acabar! Eu cabeceava sem bola. Ele dizia: “vai beber água e volta”, eu reclamava, não aguento mais, e ele: “tu vais me agradecer lá na frente”. Hoje, de fato, sou muito grato a ele.
P- Vocês ainda têm contato?
R- Eu ligo pra ele lá em Tombos (MG), e a gente se fala. Outro dia, eu reencontrei com ele numa cerimônia da Taça São Paulo. Eu fui representando o estado do Amapá. Eu estava de barba, fui falar com ele e ele não me reconheceu. Eu perguntei: o senhor não é o Joubert Meira? Ele me olhava assim... mas não me reconhecia. “Não foi o senhor que o Garrincha driblou dez vezes?”, eu provoquei. E ele: “Pô, mas eu dei três porradas no Garrincha!”. É, eu falei, mas o Mario Viana falou que o senhor nem achou o Garrincha… Eu notei que ele tava ficando com raiva e manerei: pois eu sou o Bira. Eu torço e agradeço ao senhor. Sabe o que ele respondeu? “Primeiro vá tirar essa barba pra conversar comigo. Tá ridícula”.
P- Como foi sua chegada ao Internacional?
R- Logo que eu cheguei eu fui boicotado. Eu fui boicotado! Não deixaram eu sentar na mesa pra jantar com todo mundo. Quando entrei no ônibus me deram aquelas balas mágicas pra chupar (que deixa a língua azul). Zombaram de mim.
P- Por que você é do Norte, ou porque é negro?
R- Porque era do Norte.
P- E como você reagiu?
R- Com futebol. No primeiro treino, de dois toques, eu meti 18 gols! O resto a história conta. Eu fiz gol de primeira, fiz de cabeça, de bicuda, de pé esquerdo e direito, fiz gol de todo jeito. Naquela época, só quem batia de fora da área no treino era o Falcão. Eu falei: eu sei fazer. Aí, eu fiz. Foram quatro anos de titular e com o tempo eu virei dono do time. Eu mandava. No início eu fui humilhado, mas no final eu mandava. O treinador era Ênio Andrade. Internacional 2, Santa Cruz 0. Quantos do Bira? Dois. Desportiva 1, internacional 5. Quem fez o gol? Um do Jair, quatro do Bira. Grêmio 1, internacional 2. Gol de quem? Um do Bira.
P- Qual foi o zagueiro que parou o Bira?
R- Nenhum!
P- Quem você respeita como zagueiro?
R- Pra mim, o melhor de todos foi o Marajó.
P- Mas ele não vale, era do seu time. Eu falo de outro time, quem deu trabalho?
R- Sem falsa modéstia, nenhum.
P- Quantos gols você fez na carreira?
R- Só aqui em Belém, eu fiz 28 em 78 e 32 em 79. Eu pergunto pra vocês: quem já fez 28 no campeonato? Não precisa nem ver os 32. Quem já fez 28? Só eu. E já faz mais de 40 anos isso.
P- Então por que você não chegou na Seleção?
R- Eu me machuquei na véspera da convocação. O Telê conversou comigo. Internacional e Atlético. Dois a 1 pro Internacional, eu meti os dois gols, no Mineirão. De lá fomos pra Venezuela, mas meu joelho tava machucado. Nunca tinha viajado de jatinho. Aí, me avaliaram, e disseram “olha, rompeu o menisco”...
P- Você está falando daquela Seleção do Telê, ainda considerada uma das melhores de todos os tempos?
R- Aquela seleção. Naquele ano, eu fiz 24 gols no Campeonato Brasileiro.
P- Mas quem foi no seu lugar, o Serginho?
R- Não, o Serginho era o titular. Foi o Roberto Dinamite. Era pra ser o Careca, mas depois o Telê chamou o Roberto. E o Roberto não jogou nenhuma partida e nem foi no banco.
P- Quem você mais admira dessa época?
R- Mesquita. Sem ambição, de uma humildade impressionante. Ele era o cérebro do time do Remo. Ele foi muito injustiçado lá no Mangueirão, recentemente. Isso porque eu não estava aqui. Se eu estivesse aqui, eu dava no secretário.
P- Essa fama de indisciplinado atrapalhou você?
R- Eu fui expulso uma vez. Eu já estava no Juventus. E fui expulso uma vez no Remo também. De resto, eu nunca tomei nenhum cartão amarelo na minha vida aqui em Belém.
P- Mas questionavam seu comportamento fora de campo?
R- Uma vez, lá no Internacional, os caras anunciaram: nós vamos contratar o Lula, que era ponta-esquerda do Fluminense. Aí, alguém questionou: mas o Lula é bebedor, gosta de fazer confusão. O diretor de futebol disse: “Olha, o Lula não vem casar com a minha filha, ele vem jogar futebol”. Adivinha quem foi campeão brasileiro? Inter.
P- Mas e você, como era seu comportamento fora de campo?
R- Nunca me atrapalhou. Hoje ninguém sabe, mas naquela época o Remo concentrava sábado às 8 da manhã. Os caras falavam, ah o Bira tá na boate. Teve um jornalista, já falecido, que falou que eu cheguei na hora do jogo. Foi no Remo e Guarani. Ele perguntou na matéria se o treinador ia ter moral pra me escalar. Só que, na verdade, eu tinha dormido na sexta na casa de uma prima e cheguei de manhã no sábado, 7h, me troquei e fui treinar. Não saí no sábado. No domingo, eu acordei cedo e fui pra missa, na igreja de São José de Queluz. Quando eu volto da missa, 8h da manhã, esse jornalista falou que eu tava chegando da farra. Caíram de pau em mim. Olha o resultado. Primeiro tempo: 3 a 0. Três gols meus. Segundo tempo: dois minutos, 4 a 0. E 25 minutos: 5 a 0. Todos gols meus.
P- Por que hoje não é assim, Bira? O que falta?
R- Acreditar no jogador jovem. Hoje os clubes do Pará não acreditam.
P- Mas não é assim no Brasil todo, fora os grandes clubes?
R- No Brasil todo falta organização.
P- Você acredita no Tite?
R- Não acredito em treinador puxa-saco. Não acredito. Tite é puxa-saco. A fama dele como jogador era de traíra. Cabeça de área do Caxias, jogou muito tempo contra mim. Fala bonito. Isso eu chamo de futebol de enganar bobo.
P- E no Neymar?
R- É muita vaidade. O cara passa uma bola e olha pra arquibancada. Chega de helicóptero. Já pensou tu esperando o Expresso Modelo pra vir de Castanhal pra Belém, aí passa o helicóptero prrrrrrr.
P- Então qual é a do Neymar?
R- É a Bruna Marquesine…
P- Mas, Bira, vai dizer que você não era vaidoso?
R- Muuuito. É por isso que, dentro do campo, eu queria ser o melhor, para aparecer no jornal e dar entrevista. A gente saía de bermudinha na João Alfredo pra mostrar as coxas.
P- Olhando pra trás: qual foi o dia mais feliz da sua vida no futebol?
R- Foi o dia em que o Manoel Ribeiro me deu a passagem e disse: tu és o novo jogador do Internacional. Eu brigado com a minha namorada. Ele: você tem que ir 4h da manhã. Eu peguei o avião e fui embora. Uma semana depois, ela me procurando já na delegacia. Eu tinha estreado contra o Santa Cruz. Dois a zero, eu fiz um gol. No dia seguinte eu deu um jeito de vir aqui em Belém e me casei com ela. Esse foi o dia mais feliz da minha vida.