Não era exatamente um dia de sorte na vida do paraense Márcio Sequeira. Ele batia a cabeça, havia anos, em busca da matéria-prima ideal para fabricar uma ferramenta que o ajudasse a compreender melhor o intangível mundo dos cálculos estruturais a partir de um modelo físico. Passara aquela manhã inteira e a tarde toda experimentando soluções com derivados de plástico e borracha, sem sucesso. Exausto, parou tudo e foi tomar um banho quente.
Mas não era exatamente um dia de sorte, lembra? O chuveiro elétrico estava pifado. Com boa noção de eletricidade, o arquiteto abriu o chuveiro e viu que bastava trocar a resistência, aquela pequena peça metálica, que é aquecida pela corrente elétrica para esquentar a água, tem o formato de mola e…
“Peralá!”, pensou Márcio ao manusear a resistência. "É isso! A mola!", estalou de alegria.
Foi assim, seminu sob um chuveiro pifado, em uma noite fria, que Márcio Sequeira viveu seu momento "eureka". Este insight foi decisivo, mas não nasceu por acaso. A descoberta ajudou a consolidar um projeto com dez anos de gestação, que agora chega ao quarto ano de bons resutados. E que se tornou um dos maiores fenômenos de financiamento coletivo na internet.
O Kit Mola é o Lego dos engenheiros e arquitetos. Pode ser usado para construir miniaturas de prédios, pórticos, pontes e quaisquer outras estruturas, tirando do papel, em escala reduzida, os projetos de engenharia civil. É um conjunto de peças metálicas, a maioria em formato de molas, agrupadas por esferas magnetizadas e apoiadas por outros itens, reproduzindo os diferentes elementos que compõem uma estrutura: solo, fundação, vigas, contraventamentos, etc.
Uma solução física e tátil para compreender um tema abstrato, como é o cálculo estrutural. Mas é melhor que o próprio Márcio explique.
O que é o Mola?
É uma espécie de Lego para engenheiros e arquitetos. Uma ferrameta educativa, que ajuda os profissionais a entenderem como as estruturas arquitetônicas funcionam. Ou seja: como os edifícios funcionam, na prática, de uma forma intuitiva e qualitativa. Com o kit, você não precisa de conhecimento técnico muito aprofundado. Qualquer pessoa pode pegar o modelo e começar a montar alguma coisa.
Quando você teve esse insight?
Eu era estudante em um curso de especialização em arquitetura, em Belo Horizonte, para onde fui depois de me formar na Universidade Federal do Pará. Sempre tive dificuldade nas aulas de estruturas, porque são muito abastratas e eu tinha necessidade de entender aquele assunto de uma forma mais prática e direta, sem precisar fazer tanta conta. Então, comecei a desenvolver o modelo para mim, porque eu queria entender o que eu via em sala de aula. Quando os professores viram, eles acharam o modelo interessante e me incentivaram a continuar trabalando.
Que material você usa nos modelos?
São feitos por molas metálicas e as conexões são ímãs em formato de esferas. A gente tem também algumas peças de plástico e de metal para compor as estruturas, o mais fiel possível a uma estrutura real. Cada peça representa um ou mais elementos. São pilares, vigas, contraventamentos, lajes, coberturas, todos os elementos estruturais de um edifício, por exemplo, cada peça ou conjunto de peças de um tamanho, um padrão.
Explique melhor como funciona.
Cada peça ou conjunto de peças representa um ou mais elementos de uma estrutura real. A gente tem uma chapa, que representa o solo, onde será montada aquela estrutura. Tem as ligações de base, que são as fundações, para fazer a ligação da estrutura com o solo. E sobre esta base a gente vai montando os demais elementos, que são os pilares, as vigas, as barras, os contraventamentos, as paredes, todos os elementos estruturais que compõem a estrutura real de uma obra.
Uma vez montado o modelo, o que se faz?
Aí, você simula situações que permitem compreender o comportamento da estrutura. Como a maioria das peças é feita de molas, depois que a estrutura estiver montada, você pode simular, por exemplo, uma carga de vento. Você aplica essa suposta carga com a própria mão, empurrando a estrutura, pressionando-a horizontal ou verticalmente, para observar como ela irá se deformar. Você visualiza na hora qual é a área deformada e começa a entender como aquela força é transmitida entre os elementos da estrutura até chegar no solo.
Mas essa é uma primeira etapa, para depois se aprofundar o estudo?
Sim, claro. O modelo não substitui nenhuma das etapas de cálculo e de verificação de uma estrutura pelos meios consagrados da engenharia. O Mola é uma fase anterior, onde você vai aprender alguns conceitos básicos, para a partir dali avançar até as demais etapas, que são superimportantes dentro da concepção de um projeto.
Como saber se o comportamento simulado é semelhante ao real?
O projeto do Kit Mola teve uma validação científica. A efetividade foi comprovada através de uma tese de mestrado. Esse trabalho demonstra que o comportamento do modelo é muito similar ao de uma estrutura real. Então, você pode confiar no modelo para fazer uma análise qualitativa das estruturas simuladas.
Essa ferramenta poderá facilitar o ensino da engenharia e da arquitetura?
Ainda é cedo para avaliar a dimensão desse resutado, mas nós já temos muitos relatos de professores e estudantes, no mundo inteiro, que usam o modelo e que consideram positivo. Uma das vantagens é evidenciar o interesse dos alunos pelo tema. O Mola ajuda a facilitar essa conexão dos conceitos com a necessidade de aprendê-los. Ajuda a superar aquele medo de entrar numa aula que é só cálculo, que todo mundo diz que é complicada. Só tem quatro anos que o kit foi lançado, mas a gente acredita que em mais alguns anos vai se comprovar a aplicabilidade do modelo nas universidades.
O que era uma ferramenta pessoal virou um grande negócio?
Sim. Eu passei dez anos desenvolvendo esse projeto, até conseguir financiar o primeiro kit de peças, o que foi feito através do crowdfunding, o financiamento coletivo pela internet. Isso foi em 2014. Desde esse momento pra cá a ideia se tornou um negócio e eu vivo essa empresa 100% do meu tempo. Já estamos na fase de financiamento da terceira versão do kit.
Na fase de financiamento, o Mola foi descoberto pela indústria ou pela academia?
Quando a gente lançou a campanha do financiamento coletivo, descobriu que o próprio crowdfunding já tem uma dinâmica em que prevalece o apoio de pessoas físicas. Não é tão comum a gente ter empresas apoiando o financiamento coletivo. A gente teve muito apoio de estudantes, professores, engenheiros, arquitetos. É claro que também houve algumas empresas e universidades, mas o grosso mesmo, a grande maioria foi de profissionais e estudantes que deram apoio.
Essa similaridade com o Lego é uma inspiração da infância?
Sim, com certeza. Eu brincava muito com Lego, até hoje eu tenho várias caixas do brinquedo em casa. Acho que tudo o que a gente faz na vida ajuda a nos formar como pessoas e como profissionais, inclusive essas referências, como está provado no meu caso.
Aplicar uma ferramenta lúdica na área de exatas é bem desafiador, não?
Acho que sim, mas deveria ser muito mais práticado. É comum, no ensino da física, que é a base de todas as atividades científicas, a gente fazer experimentos para entender os fenômenos. Por que não fazer a mesma coisa em um curso de engenharia, por exemplo? São fenômenos físicos que a gente vê em um edifício.
Existe um certo medo da subjetividade no ensino da engenharia, ou é apenas uma questão de pragmatismo na escolha dos processos?
Essa é uma questão complexa. Vai muito da estrutura das escolas, das universidades, dos modelos de ensino. Mudar a maneira de ensinar e de abordar determinados assuntos da área de Exatas não é tão simples. A mudança deve ser feita aos poucos, quando houver necessidade, e tudo sempre em longo prazo.
No mundo conectado pela tecnologia, o sucesso de uma ferramenta que resgata a importância dos sentidos e da intuição é um tremendo paradoxo, não?
É verdade. Mas veja só. Mesmo com todas as ferramentas e com a tecnologia disponível, que são fantásticas e podem produzir imagens praticamente reais, a ponto de você não saber diferenciar o que é uma maquete eletrônica de uma fotografia, mesmo assim, o modelo físico tem um papel insubstituível na educação. No momento em que você monta uma coisa com suas próprias mãos, você consegue visualizar isso, espacialmente, ter uma ideia de volume… é fundamental. Para o arquiteto, para o engenheiro, é muito importante. Todas as ferramentas modernas são superimportantes, mas o modelo fisico permite uma experiência que é muito difícil de substituir.
É algo parecido com a diferença entre ler um livro-objeto e um e-book?
Algo assim. Você sabe que há uma diferença. Você pega no livro, você sente o peso, sente a textura do papel. Talvez isso influencie de alguma maneira no que você está pensando e no que está lendo. No caso do Mola, ter noção espacial de como uma estrutura funciona de forma global é muito importante e é muito difícil alcançar essa percepção num software.
Nos cálculos você se certifica, mas não vê os resultados, é isso?
Normalmente, nas soluções de cálculo para as estruturas, você divide as estruturas em partes e calcula cada parte separadamente. Mas na verdade as estruturas funcionam como um todo. Todas as peças estão ligadas entre si. Entender como isso tudo se comporta em um modelo físico é totalmente diferente. E tem o tato envolvido. Você usa as próprias mãos e sente que uma estrutura é mais rígida que a outra.
É a sensação a serviço da compreensão?
Quando se envolve os sentidos, tudo fica mais fácil de entender.
Saiba mais sobre o Mola: https://molamodel.com/