Por: Benigna Soares
Em 2016 o empresário maranhense e bacharel em direito, Lucas Leite Ribeiro Porto, começou a vivenciar um verdadeiro pesadelo, um drama que mais parece um daqueles livros ou filmes de ficção, inimagináveis na vida real. Até então, Lucas era casado, tinha duas filhas, pais e irmãos amorosos, reconhecimento da sociedade e muitos, muitos amigos.
Mas, no dia 13 de novembro sua cunhada, a publicitária maranhense Mariana Costa, foi encontrada morta no apartamento em que morava com o marido e filhos. Por ser íntimo da família e ter estado no apartamento naquele dia, Lucas Porto foi acusado pelo crime, que afirma não ter cometido.
Sentenciado pela opinião pública, pela mídia, pelas incontáveis fake news, Lucas perdeu tudo o que conquistou por décadas e está há quase cinco anos entre os presos comuns do Maranhão, aprisionado por um jogo político, econômico e midiático.
O principal advogado do caso é o criminalista Ricardo Ponzetto, que no próximo dia 24 de maio, durante o Júri Popular de Lucas, vai provar inúmeras falhas nas investigações, perícias, decisões do juízo e da desumanidade de uma prisão cautelar que repete a realidade de mais de 30% dos mais de 700 mil presos no Brasil, onde aproximadamente 200 mil homens e mulheres estão encarcerados sem nenhum julgamento, 5 mil só no Maranhão, onde há mais de 11.800 presos em regime semiaberto e fechado. Confira a entrevista.
O caso de Lucas Porto é um dos mais polêmicos já ocorridos nos bastidores da justiça do Maranhão. Envolve a busca da justiça, já que uma mulher foi morta e pode ter sido vítima de feminicídio e estupro, mas também envolve interesses políticos, vaidades, disputas patrimoniais e injustiça, uma vez que Lucas está há mais de quatro anos na prisão sem um justo julgamento. O Senhor pode resumir esse processo e o que ele significa para o judiciário brasileiro?
RICARDO PONZETTO: Revelou-nos a presente persecução criminal que, interesses diversos se sobrepuseram à busca da verdade real. A prova dos autos revela-nos, desde o início, que a investigação foi levada a efeito, em detrimento de Lucas Porto, desprezando outros possíveis suspeitos. Lucas foi preso, horas após os fatos, quando retornou para o edifício em que a vítima residia, após saber do falecimento. Nesta ocasião, sem que existisse o estado flagrancial e, portanto, em desrespeito ao art. 302 do CPP, Lucas Porto foi preso e o inexistente flagrante convertido em prisão preventiva na data de 14.11.2016. Desde então, passados mais de 04 anos, Lucas Porto está preso provisoriamente, sem que tenha sido julgado. Sua prisão, no entanto, trata-se de evidente antecipação de pena, vedada pela Constituição Federal, imposta por magistrado que não é o verdadeiro juiz da causa, pois o julgamento do mérito cabe ao Tribunal do Júri. Este processo significa para o judiciário brasileiro uma chance de se fazer justiça, reconhecendo as falhas na condução do inquérito policial e da ação penal, que deram à imprensa informações distorcidas, como a inexistente confissão de Lucas e a versão de que teria havido intensa luta entre ele e a vítima. É uma oportunidade para refletirmos sobre o devido processo legal, o respeito às garantias fundamentais e, substancialmente, sobre apenas formular um juízo de valor quando soubermos a verdade dos acontecimentos, não ouvindo apenas um lado da história.
O seu escritório foi contratado para defender Lucas Porto em um contexto de prejulgamentos por boa parte da sociedade maranhense, de sensacionalismo e consequentemente linchamento da imagem de Lucas, que para a grande maioria seria culpado. No seu entendimento, ele é inocente? Quais argumentos o convencem dessa inocência?
RICARDO PONZETTO: Acreditamos, piamente, na improcedência da acusação. Os argumentos que alicerçam sua inocência, por questão eminentemente processual (considerando a fase da ação penal, em vias de ocorrer o julgamento), serão apresentados em plenário, ao juiz natural da causa, o povo.
O Senhor aponta falhas na investigação. Quais são essas falhas?
RICARDO PONZETTO: Não são falhas apenas na investigação, mas também na condução da ação penal. Em primeiro lugar, a ilegal prisão em flagrante de Lucas, sem que tenha havido estado flagrancial. Consequentemente, foi ilegal a prisão preventiva, que se arrasta até o presente momento. Houve quebra da cadeia de custódia, pois não foram preservados os elementos de prova. Inúmeras pessoas tiveram acesso às câmeras de monitoramento do edifício e ao interior do apartamento, que restou alterado. O celular da vítima ficou em posse da família, não sendo imediatamente entregue à polícia, muito embora fosse imprescindível à investigação. Diversas testemunhas não foram sequer identificadas, muito menos ouvidas, mesmo uma tendo participado ativamente do socorro da vítima. Não foram obtidas as gravações do sistema de monitoramento interno do condomínio dos dias anteriores, que provariam que Lucas Porto tinha o costume de descer pelas escadas, assim como não há a integral gravação correspondente ao dia dos fatos, de modo que não é possível visualizar se terceira pessoa teve acesso ao apartamento da vítima, em que pese haja grande possibilidade.
Na sua opinião, outras pessoas deveriam ter sido investigadas e ouvidas?
RICARDO PONZETTO: Sim, não foram comprovados os supostos álibis do viúvo, nem feitas investigações para saber onde exatamente ele estava no dia da morte da esposa, apesar de ser de conhecimento público que ele era um homem violento e que a agredia, conforme narrado por testemunhas ao longo da reprodução simulada dos fatos. Não foram esclarecidas gritantes divergências na prova oral produzida na condução do inquérito, que deram fundamento à denúncia.
Há contradições nos depoimentos das testemunhas?
RICARDO PONZETTO: Existem. A versão de uma testemunha-chave, que se dizia próxima à vítima, é totalmente contraditória, chegando ao ponto de ser inverossímil. Contudo, esta foi, supostamente, a primeira pessoa a ter contato com a vítima, após a saída de Lucas do apartamento. É dito por 03 testemunhas, dentre elas um delegado de polícia, que Lucas teria ficado falando ao telefone, após descer pelas escadas de emergência do prédio, por cerca de 08 minutos, mas tal ligação não aparece nas gravações e não há este lapso temporal nas imagens que compreendem a descida de Lucas pelas escadas e sua saída com o carro pelo estacionamento.
Há despacho do delegado de polícia condutor do início do inquérito, dando conta de que as supostas lesões verificadas no corpo da vítima teriam sido fotografadas. Estas fotografias, contudo, sumiram e, até hoje, mesmo sendo requerido diversas vezes pela defesa, não foram juntadas aos autos.
O Senhor tem contestações sobre as perícias?
RICARDO PONZETTO: Incialmente, após o primeiro atendimento no hospital, no que foi realizado o procedimento de RCP (Reanimação Cardiopulmonar), o médico responsável, que constatou a morte, encaminhou o corpo da vítima ao SVO (Serviço de Verificação de Óbito), que cuida dos óbitos decorrentes de morte natural, não suspeitas de incidência de crime.
Sobre o corpo da vítima: Após a chegada da família, o corpo da vítima, inexplicavelmente, foi encaminhado ao IML, em desacordo com a praxe médico-legal. Neste ponto, o exame cadavérico da vítima, também em desacordo com a literatura da medicina legal, ocorreu de madrugada, quando há maiores chances de erros, não sendo recomendado que assim se faça. Ademais, as supostas lesões na vítima, não foram fotografadas pelos peritos, impossibilitando aferir se realmente existiram e, se sim, em que momento teriam sido produzidas, sobretudo porque o corpo da vítima fora manipulado por diversas pessoas, desde o momento em que saiu carregada de seu apartamento e foi colocada no chão do elevador, posteriormente sendo deitada no banco traseiro de um carro.
Perícias telefônicas: Não fora realizada perícia, de forma completa, nos aparelhos de telefone celular de Lucas e da vítima, desconsiderando-se as possíveis conversas existentes entre os dois, bem como não tendo sido analisado o histórico de chamadas, para checar se Lucas realmente haveria ficado ao telefone após sair do apartamento da vítima.
Imagens: Não foram requisitadas as gravações das câmeras de segurança do condomínio em que Lucas residia, para saber o que por ele foi feito quando do retorno do prédio da vítima.
Fora negado o acesso à defesa de Lucas de importantíssimos elementos de prova, que só se tornaram de seu conhecimento após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF).
Um primeiro Juri Popular foi adiado. O que houve?
RICARDO PONZETTO: Fora publicada lista geral de jurados em desacordo com os preceitos legais, sem constar suas profissões. Tal providência é imprescindível ao julgamento pelo Tribunal do Júri, pois garante a diversidade social dos jurados e permite que seja traçada a estratégia das partes para o julgamento. Em correição parcial interposta para sanar esse vício processual, o Tribunal de Justiça do Maranhão deu provimento ao recurso, determinando nova publicação da lista, de acordo com o Código de Processo Penal (CPP). Novamente o juiz presidente da ação penal, em desobediência à determinação do Tribunal, publicou a lista desacompanhada das respectivas profissões, composta unicamente por funcionários públicos, o que fere o espirito da lei processual penal. Em reclamação julgada procedente, reconheceu-se a ilegalidade da conduta do magistrado, determinando-se que publicasse nova lista, antes do julgamento de Lucas, de acordo com a lei. No primeiro sorteio dos jurados para a reunião periódica, a defesa verificou 32 nomes em duplicidade na lista de jurados (que posteriormente fora declarada ilegal, determinando a publicação de uma nova, como mencionado), todos eles integrantes de um mesmo instituto, o qual tem o assistente de acusação no quadro do núcleo estratégico. Ainda pior, em conferência à urna que foi utilizada para o sorteio dos jurados, a defesa identificou sete nomes em duplicidade, todos do mencionado instituto ligado ao assistente de acusação, aumentando as chances de que um deles fosse sorteado.
O processo chegou a correr em segredo de justiça. Isso dificultou a defesa de Lucas Porto?
RICARDO PONZETTO: Houve incabível decretação de segredo de justiça do processo, que tramitou, desde o início, em plena publicidade. O juiz decretou o sigilo sem requerimento das partes, isto é, sponte propria, de maneira que não lhe cabia, sobretudo na véspera da submissão de Lucas ao Tribunal do Júri. O segredo, diga-se, fora decretado quando as provas requeridas pela defesa, que revelam a inocência de Lucas, estavam sendo juntadas aos autos. Outrossim, tanto a defesa quanto a assistência de acusação revelaram desinteresse no sigilo do processo e requereram pela publicidade, que foi indeferida. Em novo recurso ao Tribunal, houve o provimento para determinar o restabelecimento da publicidade irrestrita do processo.
Lucas Porto, em um primeiro momento, negou que tenha sido autor do crime em questão, mas em um determinado momento teria confessado ao delegado que presidia o inquérito. Ele de fato confessou? Em seguida, foi alegada a insanidade mental do acusado, rejeitada pelo juízo. O que aconteceu para que houvesse a mudança de depoimento?
RICARDO PONZETTO: Lucas nunca confessou a prática de qualquer crime. O segundo interrogatório decorreu de ameaças e da coação que Lucas sofreu quando foi preso, pois, acusado de ter supostamente assassinado integrante da família de um dos políticos mais importantes do Estado do Maranhão. Mesmo assim, da leitura atenta da segunda oitiva perante a autoridade policial, nota-se que, em momento algum, há confissão.
O que ensejou esse excesso de prazo na prisão cautelar de Lucas Porto, sem julgamento, e o que já foi feito para reverter essa situação?
RICARDO PONZETTO: O excesso de prazo da prisão processual é responsabilidade única do juiz presidente do Tribunal do Júri. Após a decisão de pronúncia, concluído o incidente de insanidade mental e julgados os recursos interpostos, a todo momento, a defesa de Lucas buscou viabilizar um julgamento seguro de mérito, não lançando mão de qualquer prática protelatória, muito pelo contrário. A consecução da verdade real é o único desiderato defensivo, de modo que todos os requerimentos de produção de elementos de prova são pertinentes e indispensáveis ao julgamento pelo Tribunal do Júri. Neste sentido, as diligências pendentes de cumprimento se devem, todas, à demora do Juízo e da máquina estatal. Para reverter a situação foram impetradas ordens de habeas corpus junto ao TJMA e há recurso pendente de julgamento no STJ. Aliás, no último habeas corpus impetrado, por maioria de votos, o Tribunal denegou a ordem, com um desembargador reconhecendo o excesso de prazo para formação da culpa.
O júri que seria em fevereiro foi adiado, a seu pedido, para que seja realizada uma perícia acústica. Do que se trata e quais as razões dessa perícia?
RICARDO PONZETTO: Mais uma das inverdades deste processo levadas a público é que o julgamento foi adiado a pedido da defesa. Contudo, a defesa de Lucas não pediu, em momento algum, o adiamento do júri. O júri foi adiado em razão da demora do Juízo e do Instituto de Criminalística em realizar as diligências requeridas na fase do art. 422 do CPP, muito embora a defesa as tenha solicitado em agosto de 2020 e todas tenham sido deferidas, porque pertinentes e relevantíssimas ao julgamento do mérito. Ocorre que, passados mais de 06 meses dos pedidos, as diligências, por responsabilidade da máquina judiciária, ainda não tinham sido realizadas, inviabilizando o julgamento. De se destacar que o juiz, mesmo ciente de que as providências estavam pendentes por sua culpa, designou o júri para 24.02.2021, tudo para atribuir à defesa o futuro adiamento e se isentar da responsabilidade pelo excesso de prazo.
Perícia acústica: Igualmente importante que se diga que a perícia acústica constava dos requerimentos formulados em agosto de 2020, e tinha por objetivo aferir se, no dia dos fatos, era possível que os vizinhos tivessem ouvido gritos ou barulhos decorrentes de luta, eis que a defesa, amparada pelo conjunto probatório, sobretudo pela prova testemunhal e análise atenta dos laudos periciais, aduz que não houve qualquer tipo de violência ou embate físico. Tal perícia teve início em novembro de 2020, porém, por erro do Judiciário e dos peritos, não foi realizada no andar de cima ao do apartamento da vítima, como havia sido deferida pelo juiz, oportunidade em que foi necessário agendar nova data para a continuação do trabalho pericial.
O tribunal do júri está previsto na Constituição para julgamento de crimes dolosos contra a vida — como homicídio e feminicídio. Um dos princípios do julgamento popular é o da "plenitude de defesa", mais abrangente que a ampla defesa dos outros processos criminais. O Senhor acha que levar Lucas ao júri popular pode beneficiá-lo em sua defesa de alguma forma e favorecer a restauração da justiça no caso dele ou é prejudicial?
RICARDO PONZETTO: Por determinação constitucional, os crimes dolosos contra a vida, como muito bem-dito, são julgados pelo Tribunal do Júri. Em síntese, o legislador entendeu que, nestes casos, deveria o réu ser julgado por seus pares, dado a natureza dos crimes a ele imputados. No caso de Lucas, temos a plena certeza de que o júri popular é o palco adequado à busca da verdade real, pois seus semelhantes poderão perceber todas as injustiças cometidas ao longo da persecução penal, desaguando os elementos de prova, a despeito do que vem sendo divulgado pela imprensa maranhense, na conclusão inarredável de sua inocência.
O Senhor considera que esse é mais um caso de insegurança jurídica no Brasil? Quais as expectativas para a resolução sem que haja injustiça tanto para a vítima quanto para o acusado, já que o verdadeiro culpado pode estar solto e impune ao que fez?
RICARDO PONZETTO: Nossas expectativas, de resolução do caso, passam necessariamente pela justa ABSOLVIÇÃO de Lucas Porto e, após, sem quaisquer influências, com a retomada da investigação séria e imparcial, com escopo único da busca da verdade real.