INCLUSÃO SOCIAL


Foto: Nélio Palheta
O que a leitura de um livro, uma biblioteca, um projeto de teatro e música podem fazer por uma comunidade? A resposta pode estar na “radicalidade da democracia” - uma lógica do padre Bruno Sechi, que sintetizaria o que se pode entender por inclusão social pela leitura.
Mas, como efeito prático, a resposta está, como realidade indiscutível, no Movimento de Emaús (http://www.movimentodeemaus.org), fundado há 49 anos pelo sacerdote em Belém, e que trabalha com um leque de variáveis sociais, políticas, econômicas – enfim, humanas – há bastante amplo. Há duas semanas o Movimento instalou na República de Emaús, no Bairro do Benguí (Avenida Yamada, 17), a Biblioteca D. Bosco, que será efetivamente aberta ao público após as férias escolares.
PEGADA DA NOITE CULTURAL
Foi essa biblioteca que os jornalistas da Casa C (uma cooperativa de comunicadores em fase de implantação) elegeram como alvo da “pegada social” da Noite Cultural, evento que acontecerá nesta quinta-feira, 27, às 19 horas, na Galeria do Centro Cultural Brasil Estados Unidos (CCBEU). Cinco escritores, todos jornalistas, autografarão oito livros. A Casa C está estimulando que as pessoas que adquirem exemplares possam doa-los ao Emaús.
A biblioteca Dom Bosco é uma adaptação de uma sala de leitura que estava fechada. Com recursos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a atividade da leitura foi retomada e a biblioteca instalada. A inauguração ocorreu no dia 18 de junho com a participação de várias representações da comunidade do Benguí. Cleice Maciel, coordenadora da República, festeja a iniciativa de doações de obras literárias de jornalistas: “A iniciativa da Casa C chega numa boa hora”.
UM OÁSIS NO BENGUÍ
Além das bibliotecas que eventualmente existam nas escolas públicas (normalmente são livros didáticos e paradidáticos), o bairro não tem uma biblioteca pública, a mais próxima está no Distrito de em Icoaraci, mais de 10 quilômetros distante do bairro.
Na área da República do Emaús há uma escola, que até 1990 pertenceu ao Movimento e desde então é administrada pelo Estado. Cleice Maciel leciona educação artística nessa escola, cuja biblioteca está fechada. “O acervo está obsoleto; quando quero fazer algumas atividades com os alunos sou obrigada a limpar previamente o ambiente e levar uma lâmpada porque não tem luz”, diz a educadora.
O Benguí só não é um deserto cultural por causa do Movimento de Emaús. E a Biblioteca D. Bosco surge como um oásis, uma fonte capaz de irrigar com literatura a comunidade do bairro. Embora atenda o público interno do Emaús, só em agosto, quando reabrir o ano letivo, estará disponível à comunidade. Mas no período das férias dos estudantes atenderá as pessoas cadastradas como “público interno”.
LEITURA, TEATRO, MÚSICA
O Movimento criou a biblioteca como um instrumento de difusão da leitura capaz de incrementar outras atividades, como a música e o teatro. Antônio Marco do Rosário é um artista de circo formado pela Escola Nacional do Circo, no Rio de Janeiro. É o coordenador das atividades artísticas da República. Ele e Cleice Maciel, Coordenadora geral, participam do grupo de teatro Palhaços Trovadores, em Belém. Na República, diante de uma realidade social e complexa, a atuação deles não é de palhaço, não há piada nem brincadeira quando as atividades estão focadas na educação, na arte e na cultura de cerca de 800 crianças, adolescentes e jovens do bairro; 600 deles participam das atividades de arte-educação, 150 são atendidos com cursos profissionalizantes.
Na República de Emaús, além dos cursos que ensinam práticas com o objetivo de gerar ocupação e renda para os jovens sem em prego, e da biblioteca, a comunidade conta com atividades de teatro, música, artes plásticas. Mas as dificuldades estão fora do palco. Os educadores dizem que a leitura – isto é, a falta dela - é uma barreira às atividades artísticas. “A leitura é coisa difícil para crianças e jovens obrigados a ler na escola. Ninguém gosta de ler por obrigação”. Precisando se encontrar com a leitura, “é dolorido para esses jovens, por exemplo, entender o teatro. Eles têm muita dificuldade para compreender os textos. Quando se faz leitura das peças, eles não querem a atividade teatral porque não sabem ler”, lamentam-se os educadores. Mesmo assim, o teatro é uma experiência indispensável na República.
Na música não é diferente. “Os meninos gostam de tocar e cantar, mas decoram as letras das músicas pelo mesmo motivo das dificuldades no teatro: leem com precariedade ou não sabem ler e, por isso, têm dificuldade de interpretar textos”, diz Cleice.
Com um tom mais de desafio e menos de desistência, Cleice é dura na conclusão: “Não adianta a arte se eles não têm consciência. E a leitura é o começo, uma porta para essa consciência”. A proposta da Casa C, de se doar livros de autoria dos jornalistas, autografados na noite desta quinta-feira (27), surge como uma contribuição primordial para o incremento do hábito da leitura entre jovens e crianças do Benguí.
PARCERIAS E APOIOS
O Movimento de Emaús não está sozinho na luta contra essa realidade do Benguí, que é consequência de ume espectro social mais amplo, complexo, marcado inclusive pela violência. Mas os coordenadores acreditam no apoio da comunidade para mudar a história a realidade que passa pela escola deficiente e pala falta de oportunidades familiares para a leitura. A abertura da biblioteca atraiu o interesse do Núcleo de Educação Paulo Freire (NEPF), do Grupo de Mulheres Brasileiras (GMB), da Associação dos Moradores do Benguí (Amob) e do Projeto Nossa Biblioteca, que há 40 anos funciona no bairro do Guamá.
Atuam na República 48 pessoas, incluindo educadores sociais, professores, técnicos, artistas. A parceria com várias instituições educacionais garante a manutenção de projetos culturais. No ano passado, a Unesco aprovou um aporte financeiro para o Movimento de Emaús no valor de R$ 260 mil – recursos que estão garantindo as atividades deste ano. A Universidade Federal do Pará é um dos órgãos públicos que apoiam o Movimento; por convênio, alunos de teatro promovem oficinas e os de biblioteconomia trabalham na seleção e catalogação do acervo da biblioteca; outros estudantes, integrantes do projeto “Encantarte”, também promove atividades com crianças e jovens mediante contação de histórias. No campo da música, o apoio é da Fundação Carlos Gomes. Um projeto bastante requerido pelos jovens é de artes plásticas chamado “Direitos em tela”, que trabalha o tema dos direitos humanos.
RADICALIDADE DA DEMOCRACIA
Direitos Humanos, por sinal, é um tema que está nas origens do Movimento Emaús e que tem pertinência à realidade do Bairro – uma das “áreas vermelhas” de Belém para a segurança pública. Padre Bruno Sechi, 80 anos de idade, 51 de sacerdócio, idealizador do Movimento de Emaús, nascido da República do Pequeno Vendedor, ainda hoje participa da direção da instituição. Ele recebeu com satisfação a proposta dos jornalistas da Casa C, e comentou: “Pelo jornalismo garantimos transparência. E todos temos o mesmo sonho: a radicalidade da democracia”, disse ao saber que livros autografados pelos Jornalistas Paulo Roberto Ferreira, Carla Vianna, Nélio Palheta, Antônio Carlos Pimentel Júnior e Paulo Silber farão parte do acervo da biblioteca do Emaús.
“Fico muito feliz com essa iniciativa, principalmente porque os dois livros (A Censura no Pará – A mordaça a partir de 1964 e Encurralados na Ponte – o massacre dos garimpeiros de Serra Pelada) que vou autografar (nesta quinta=feira, 27) têm conexão direta ou indireta com os princípios e atividades do Movimento de Emaús”, diz Paulo Roberto Ferreira.
“No meu caso, será uma honra difundir as crônicas do meu livro (Papai, você não tem amigos normais?) com jovens e crianças que precisam mergulhar na leitura como fator de inserção social e progresso humano. Talvez possamos dar resposta para a indagação do início desta reportagem”, diz Paulo Sílber.
Com a iniciativa de doar livros de autoria dos cinco jornalistas, a categoria poderá contribuir para que jovens do Benguí possam entender o que vem a ser a “radicalidade da democracia”, almejada por Bruno Sechi.