Esse rio é minha rua?

Foto: Antaq
Um relatório produzido por auditores do Tribunal de Contas da União, depois de um ano de investigação, revelado com exclusividade pela Infra, agência de notícias especializada em infraestrutura, expõe em carne viva as feridas do setor de transporte fluvial de cargas no Brasil.
Demonstra, entre outras revelações, o quanto o país é negligente com o potencial hidroviário, que é gigante pela própria natureza e que, bem usado, poderia agregar valor e reduzir custos em uma das atividades fundamentais para a economia nacional: a circulação de mercadorias.
O relatório é contundente, como aponta a Infra, em matéria especial. "O Brasil tem uma estrada de 9 mil quilômetros, onde não há engarrafamentos nem bloqueios de grevistas ou quase nenhuma restrição de velocidade ou peso. Essa estrada passa perto de onde vivem mais de 70% da população e foi deixada pronta bilhões de anos atrás", diz a matéria da agência, referindo-se só às vias marítimas na costa brasileira, sem contar com as veias abertas pelos rios amazônicos.
"Se usada com regras racionais, poderia resultar numa economia superior a 80% em cada tonelada de produto transportado em relação ao custo desse mesmo item no transporte via caminhão, veículo usado para levar 65% de toda produção nacional", compara a reportagem.
"Mas a inércia do poder público ao longo de anos fez com que os custos aportados no decorrer do tempo tornassem cara e ineficiente a opção por usar navios nas vias marítimas e hidroviárias do país para transportar mercadorias, o que ajuda a manter um cartel de três empresas e impede o desenvolvimento do setor", arremata a matéria assinada por Dimmy Amora.
Se a região Norte já avança, ainda que timidamente, no transporte de passageiros, com quase 10 milhões de pessoas levadas pelos rios de um ponto a outro da região, o transporte de cargas ainda é pífio comparado com suas possibilidades. Em 2017, cerca de 3,4 milhões de toneladas de cargas flutuaram sobre as águas da bacia amazônica, de acordo com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Uma quantidade infinitamente menor do seria possível.
Não é só aqui. Segundo a própria Antaq, em 2018 foram movimentadas por hidrovias interiores do país mais de 100 milhões de toneladas, quantidade que não representa nem 5% do total de cargas transportadas em território nacional em outros modais, embora o transporte aquaviário seja considerado o meio mais eficiente e mais barato de levar mercadorias de um lugar para o outro.
A discrepância é tão flagrante, segundo os auditores do TCU, que uma tonelada de produtos transportada de Belém para São Paulo por via rodoviária, por exemplo, custa em torno R$ 596. Se essa mesma carga for de navio, ainda que se utilize um trecho rodoviário entre o porto de Santos e a capital paulista, o custa cairia para R$ 325. São R$ 271 a menos, uma economia nada desprezível de 45%, quase a metade.
Parece ruim? Vai piorar. A Petrobrás acaba de autorizar reajuste no preço do bunker, combustível usado para a navegação, que está cerca de 25% mais caro no país. Esse preço terá impacto em todo o sistema de navegação, especialmente na cabotagem. Enquanto a navegação de longo curso é isenta de ICMS desse produto, os navios em operação dentro do país têm de arcar com o imposto.
"A estimativa junto a agentes do mercado é que o custo do combustível poderá significar mais de 50% de todo o custo de uma viagem. Como o transporte por navio concorre com outros que usam diesel, que não está sendo aumentado pelo valor do preço internacional, a diferença de competitividade deverá crescer, inibindo cargas de irem para o sistema de transporte marítimo", analisa a reportagem da Infra.
É por conta disso que somente 10% da carga do Brasil trafega pelo modal aquaviário, na chamada navegação de cabotagem, que é aquela feita entre portos de um mesmo país, pelos rios, lagos ou até pela costa marítima. O Brasil não tem uma política pública de cabotagem, os custos dessa modalidade são superiores aos da navegação de longo curso, embora devessem ser equiparados por lei, e a burocracia dos órgãos públicos, especialmente da Receita Federal, impede o uso da multimodalidade, o que prejudica ainda mais o setor, concluem os auditores do TCU.
Mesmo com todos esses problemas, o volume de cargas transportadas por via fluvial no Brasil cresceu de 127 milhões de toneladas por ano para 163 milhões de toneladas por ano, entre 2010 e 2018, sem no entanto representar avanço no percentual transportado em relação a outros modais, como o rodoviário, que é hegemônico, e o ferroviário.
Uma opção pela cabotagem, segundo especialistas, aliando este modal aos demais, poderia reorganizar e baratear o sistema de transporte de cargas no país, a ponto de os caminhões levarem cargas em distâncias mais curtas, de até 400 quilômetros, enquanto os barcos percorreriam as distâncias maiores.
“Imagine o caminhoneiro podendo dormir em casa”, diz o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, citado pela Infra, quando trata desse tema. Este é um detalhe importante no contexto de tensão entre o governo e os caminhoneiros por conta da tabela do frete, numa queda de braços que, recentemente, quase paralisa o Brasil.
De acordo com a Agência Infra, nos próximos dias, o governo promete anunciar um pacote de medidas para o setor de cabotagem, que vai incluir propostas de alterações legislativas, com o objetivo de turbinar esse meio de transporte e alcançar a meta de dobrar o percentual de produtos transportados por cabotagem no país, chegando a 20% do total em quatro anos.
Enquanto isso não acontece, o relatório do TCU nos leva a pisar no chão, revelando que, na prática, de cada R$ 100 que o brasileiro gasta com diversos produtos, R$ 10 são só para pagar o transporte de cargas, que poderia sair por R$ 5, a metade, barateando o custo final, apesar dos impostos.
Quem conhece ou estuda o setor sabe disso há muito tempo, o que demonstra que as escolhas, feitas por quem de dirieito, não levam em conta esse conhecimento. Em 2014, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas publicou um estudo, disponível n o site, que parece até uma premonição daquilo que o TCU constata agora.
"O transporte aquaviário é apontado como o meio de transporte mais barato e o que menos consome energia. Também é considerado o mais indicado para mover grandes volumes a grandes distâncias. O Brasil, além de sua extensa costa marítima, tem em seu território diversos rios caudalosos, propícios à navegação, entretanto, esse não é o meio mais utilizado no país para a movimentação interna de cargas", já dizia o IPEA àquela época.
"Sua participação é de menos de 15%, abaixo, inclusive, das ferrovias, reconhecidamente carentes em infraestrutura. Mesmo havendo um elevado potencial para se aproveitar rios e lagos do interior do país para escoar a produção agrícola e mineral, diversos projetos hidroviários patinam na sua elaboração e implantação. Afinal, por que isso ocorre?", questionam os autores do estudo, que há cinco anos fustiga o governo federal com perguntas que até hoje não foram respondidas.