Arte-educador
"Vou levar dele o sorriso". "Ele era um professor diferente". "Determinado. Ele exercitava a arte". "Ele queria transformar realidades". É possível elencar dezenas de discursos que mostram o quanto o arte-educador paraense Angelino Gomes Ferreira Júnior era amado e admirado. Não só porque se foi, fisicamente, no dia 16 de agosto deste ano. Ele tinha um projeto, um ideal, um sonho. Conceitos aos quais devotou uma carreira inteira. Uma entrega que deu frutos por cada escola que passou.
Essas frases soltas até dão pistas do legado dele para a educação no Pará. Sobretudo para comunidades afastadas, onde ele trabalhou nos últimos anos. A história de Angelino é um retrato de muitos professores pelo Brasil. E uma alegoria do desafio vivido por esses profissionais na Amazônia.
Angelino era professor de artes concursado da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc). O trabalho dele era pelo Sistema de Organização Modular de Ensino (Some). Na prática, é um modelo que organiza disciplinas por períodos. Cada disciplina pelo Some tem uma adaptação às realidades dos locais onde são aplicadas. Esse é um sistema que garante o ensino médio em localidades de difícil acesso e a entrega de algumas disciplinas onde não há oferta regular.
O Some tem módulos durante o ano todo. Só é aplicado onde não há escolas do Estado. A Seduc informa que sistema está presente em 85 municípios, num total de 417 localidades. Os municípios apenas garantem o prédio escolar e assinam um termo cooperativo. O Governo do Estado então arca com o corpo docente e administração. Na visão do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará (Sintepp), o sistema é fundamental para garantir o sucesso dos processos de ensino e aprendizagem em algumas áreas.
Pelo Some, no ensino fundamental há 1.668 alunos. Mas como o ensino médio é o mais carente em áreas mais remotas do Pará, há 25.679 alunos no segundo grau. Era para esses jovens, que já podiam vislumbrar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que Angelino trabalhava. Só que diante das realidades que encontrava, acabava envolvendo toda a comunidade escolar.
Desde 2018, Angelino trabalhava no município de Maracanã, no Pará. Fica a cerca de 170 quilômetros da capital, Belém. É uma cidade pequena. Em 2016, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou 28.668 habitantes. A renda salarial média é de 1,6 salário mínimo. Ainda assim, é um lugar com seis escolas na sede, entre estaduais e municipais. E em alguns distritos, há mais unidades. A educação, mesmo que com estrutura nem sempre adequada, é valorizada como possível.
Entre as escolas mais significativas por onde Angelino passou estava a escola municipal de ensino fundamental (EMEF) José Bonifácio. É uma unidade pequena, que fica na localidade de Quatro Bocas de Mocooca, próximo ao rio Mocooca. É um distrito de Maracanã, a 40 quilômetros da sede do município. O acesso só é pelo rio ou por uma estrada de péssimas condições, cercada por algumas áreas de preservação ambiental.
Projeto para o doutorado tinha objetivo de dar visibilidade à educação na comunidade
Na EMEF José Bonifácio, incluindo os beneficiados pelo Some, estudam cerca de 500 alunos. É uma unidade que atende a cerca de 18 comunidades. Por padrão, a escola só atende do primeiro ao nono ano do fundamental. O Some era a garantia do ensino médio. A orientadora de doutorado de Angelino, a professora doutora Maria Cristina da Rosa Fonseca, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), lembra dos relatos do orientando sobre a precariedade.
"Ele dizia que lá não tinha infraestrutura básica para o ensino de artes, como professores regulares, tinta ou pincel. Foi então que ele passou a usar o que tinha disponível, como materiais recicláveis. O projeto do Angelino era legal. Ele queria o doutorado para poder retornar à comunidade. E talvez conseguir com que o Governo do Estado apoiasse mais. Às vezes, ele mesmo dava jeito de levar os alunos à capital", diz a orientadora de Angelino.
Se afastando do lado profissional, Maria Cristina diz que também vai lembrar do sorriso e da alegria; da dedicação aos eventos e congressos de artes, onde ela o conheceu; e de uma característica muito marcante de paraenses em outros estados: o costume de levar isopores com comidas regionais, como doces e maniçoba.
Pela falta de material, Angelino conseguiu uma parceria local para as aulas de artes: o artesão Valderício Monteiro da Silva. Os dois começaram a pensar no que poderia ser usado para trabalhar com os alunos. Algumas coisas, o próprio Angelino que levava. Outros materiais eram aproveitados da natureza de Quatro Bocas de Mocooca. Argila e bambu operaram pequenos milagres arte-educacionais na comunidade escolar. Os alunos chegaram a participar da extração da argila.
Valderício sempre tentou fazer arte de material reciclável. No pequeno sítio dele, restos de madeira, pneus, garrafas PET e metais viram obras únicas. Foi ele que montou, em 2012, uma árvore de Natal com garrafas PET. Pela falta de símbolos na comunidade de Quatro Bocas de Mocooca, a árvore nunca foi desfeita. A cada dezembro, ela é reformada e ampliada. Em 2018, com a ajuda de Angelino e uma mobilização de todas as escolas da localidade, foram arrecadadas 7,7 mil garrafas de plástico. Muitas chegavam pelo rio Mocooca e ficavam na praia local. A árvore agora tem quase sete metros de altura.
Tamanha é a precariedade da escola da EMEF José Bonifácio que nem os trabalhos dos alunos — ou mesmo registros de um dos professores mais queridos da comunidade — são guardados. Após a morte dele, o que ficaram foram às lixeiras que ele construiu com os alunos e uma árvore de Natal, feita de materiais recicláveis. Agora é árvore de todo dia. Assim como a árvore da pracinha da comunidade, construída pelo artesão Valderício.
Não fosse pela professora doutora em Artes Visuais Viriginia Maria Yunes, que visitou a comunidade para conhecer o trabalho de Angelino, nem haveria registros fotográficos eternizados. Foi ela quem organizou o crowdfunding digital para arrecadar recursos para o traslado do corpo do professor, de Santa Catarina a Belém.
A arte como mensagem adaptada às realidades
Três datas costumavam ser importantes para a comunidade escolar. O Natal, as festas juninas e as comemorações pela Semana da Pátria. Com argila, bambu e recicláveis diversos, Angelino levou os alunos a construir celebrações que antes tinham muito menos significados. Tudo com símbolos que remetiam à realidade daquela localidade de difícil acesso.
Entre as memórias dos alunos com o professor, o presépio construído para o Natal é uma lembrança viva. No cenário que é conhecido para quem aprecia esse símbolo cristão, animais e peixes da região também compunham a obra. No desfile escolar de setembro, montaram uma canoa — uma representação da modo de vida ribeirinho da localidade — com uma bandeira do Brasil feita a partir de uma rede de pesca. Foi um pouco desafiador passar com a bandeira debaixo das fiações elétricas mal planejadas. Mas os estudantes e professores da escola adoraram. Tudo tinha alguma identidade com a comunidade. Era a proposta do Some levada muito a sério.
No Natal de 2018, Angelino pediu a ajuda de Valderício para fazer uma decoração especial na escola José Bonifácio. Além das garrafas PET e latinhas, usou vários metros de luzes "pisca-pisca" — a maioria comprada pelo professor — e pacotes metalizados de salgadinhos. Deu tão certo que outras escolas o chamaram para fazer o mesmo, como a Josias Pinheiro Salomão e Jarbas Passarinhos, ambas municipais e apenas de ensino fundamental.
"Tivemos uma afinidade quase imediata. Éramos dois artistas apaixonados por arte, ambos fazendo esse trabalho por amor, não por dinheiro. Ser artista no Brasil é muito difícil. Ele sabia disso, da falta de apoio e de valorização. O professor se dava com todo mundo. Valorizava o trabalho que fazia nas escolas. Tirava do próprio bolso para que tudo desse certo. É uma pessoa que vai deixar saudades, pois queria transformar a realidade. E transformou", declara Valderício.
Em horas vagas, Angelino fazia questão de mostrar que ser uma comunidade afastada e ribeirinha — povo tradicional amazônico, de alta harmonia com as bacias hidrográficas — não deveria ser encarado como atraso. Ele trazia uma canoa, atrelada ao carro dele. Nos finais de semana, colocava a canoa na água e jogava a rede de pesca. O professor Juliel Modesto, que conviveu com o arte-educador e era um admirador do trabalho dele, afirma que era um exímio pescador. Voltava com vários pescados nativos da região, como gó, bagre e bandeirado. Dividia com quem quisesse.
Memórias da EMEF José Bonifácio
"Criativo. Deixou para nós um olhar diferente sobre morar no interior. Nos ensinou a valorizar nossa identidade, nossas coisas, nossos materiais e ensinou a reaproveitar o que era lixo. Temos aulas de artes na escola desde 2005, mas nenhuma foi igual. E as aulas dele eram diferentes de todas que tivemos", relata Juliel. Nas demais escolas da área, há vários traços das lições de artes de Angelino. Lixeiras, decorações, desenhos, jardins... tudo feito de material reciclado.
Não só a comunidade escolar se identificava com Angelino quando voltava com a rede cheia de peixes. Todo o distrito de Quatro Bocas de Mocooca se sentia próximo dele. Foi assim que o nome extrapolou os limites dos muros da EMEF José Bonifácio. Mesmo quem nunca foi aluno dele, ou nunca fez parte da comunidade escolar, sabe quem era. Quando a reportagem chegou à localidade, várias pessoas — distantes da aparente idade escolar — deram provas de que conheciam o professor para além das aulas.
O arte-educador conversava com todo mundo. Era do tipo de pessoa que gravava o nome de qualquer um que conhecesse para falar depois. Para os alunos, além dos nomes, sabia dos apelidos. Isso quando não criava um vocativo personalizado. Era um senso de valorização ao qual os estudantes não estavam tão habituados.
Todos sabiam quando as aulas de Angelino estavam para começar. Não porque estava meramente marcado em um horário específico. É porque dava para ouvi-lo cantando, ao passo que se aproximava das salas. São lembranças de Rayane Pinheiro, uma das ex-alunas dele. As aulas de artes, antes do arte-educador, eram diferentes e limitadas.
"Arte era uma matéria muito simples, tímida. Só fazíamos alguns desenhos. Os professores pareciam muito rígidos. Ele era de outro jeito. Brincalhão, alegre. Um excelente professor e pessoa. Ele conversava com os alunos. Conhecia nossos problemas. Sempre inventava alguma coisa nova para fazermos. Eu fiz com ele uma árvore de Natal de bambu. Fiz vasos de argila. Nem acreditei quando soube que ele tinha morrido. Sem dúvida, era um dos professores mais queridos", comenta Rayane.
O retrato de Angelino: entre a admiração e a saudade de quem convivia com ele
Angelino Gomes construiu sua trajetória movida pelo sentimento de solidariedade. Encontrava na arte a forma mais singela de ensinar e educar os mais necessitados. Com essa profissão, transformava a vida de crianças e jovens que moram nas comunidades do interior do Estado.
Não era só artista. Era professor de artes. Tinha o dom de recriar o que antes não tinha valor. Fazia verdadeiras obras-primas daquilo que poderia ser chamado de lixo. Passou esse ideal aos alunos.
“Como professor, ele realmente ensinou muitas pessoas. Não só crianças, mas também, pessoas que se descobriram na arte. Ele não era só professor de artes, mas um docente que ensinava a arte de viver a vida. Ele sempre dizia que um dia a arte dele e desses jovens iria ser reconhecida. Angelino passava todo seu saber para esses jovens artistas, que também sonham se tornar grandes profissionais”, declarou Claudia Ferreira, esposa de Angelino.
A busca pelo conhecimento foi a fórmula que Angelino encontrou para mudar a própria realidade. Ao longo da trajetória dele, enfrentou desafios e dificuldades. Qualquer conjugação do verbo “desistir” não era algo com o que ele se identificasse. A perseverança era marcante. Tanto que foram cinco anos de tentativas até conseguir entrar para o doutorado. E mesmo com as dificuldades de não ter conseguido liberação e bolsa para o curso, foi para Santa Catarina. Foi um período de dificuldades financeiras, mas ele foi do mesmo jeito.
“Conheci meu marido antes de se tornar mestre de artes. Passávamos muita dificuldade juntos, mas ele sempre dizia que nunca deveríamos desistir dos nossos ideais, principalmente quando se envolvia a família”, recorda a esposa.
A determinação de Angelino resultou na formação em Teologia e em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Depois fez mestrado na Mackenzie, em São Paulo. Antes de partir fisicamente, estava fazendo doutorado, na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
O amor pela docência se materializava nos projetos. “O trabalho que ele desenvolvia era de trazer os alunos para conhecer os pontos turísticos de Belém. Muitos desses estudantes nem conheciam a capital. Ele mesmo organizava tudo e fazia questão de trazer os alunos para almoçar em casa. Muitas vezes saía do próprio bolso. Para meu pai, esse esforço era uma felicidade imensa”, ressaltou a filha, Brenda Ferreira.
Idealizado por Angelino, o projeto “Reciclatividade” ensinava estudantes das regiões das ilhas de Belém e áreas ribeirinhas afastadas a utilizarem materiais como papelão, latinhas, barro e palha na confecção de objetos artesanais. Foi a partir dessa iniciativa que veio a intenção de fazer o doutorado. O objetivo era trazer visibilidade ao projeto, em prol do bem estar da família dele e realizar o sonho da mãe, Wanda Carlotina Ferreira, de se tornar doutor. Ela também era docente. Além de professor, a esposa e filha garantem que Angelino era um esposo e pai exemplar.
“Ele sempre foi um ótimo pai, apesar das distâncias, que eram necessárias em decorrência do trabalho que ele desenvolvia nas localidades dos interiores do Pará. Porém, sempre foi em prol da família. E mesmo correndo vários riscos, ele nunca faltava ao emprego. Meu esposo sempre deu exemplo a mim e suas filhas, demonstrando que temos de lutar pelo que queremos, mas sem pisar ou humilhar ninguém. Incentivando sempre e mostrando humildade, simplicidade e união. Dizia que unidos sempre venceríamos. Como todo casal, tivemos nossas divergências, contudo isso nunca nos impediu de sermos feliz e de fazer nossas filhas contentes”, diz Claudia.
Angelino Gomes Ferreira Júnior deixou alunos, amigos e familiares no dia 16 de Agosto de 2019, em Florianópolis, onde estava fazendo doutorado no Centro de Artes (Ceart) da Udesc. Ele morreu aos 50 anos, deixando esposa, quatro filhas, uma neta e um legado que ficará na memória de quem acompanhou sua história de vida.
“O legado do meu pai, para todas as pessoas que tiveram a oportunidade de conhecê-lo, foi provar que, apesar de todas as dificuldades, da vida, ele nunca deixava de sorrir, ser engraçado e nunca desrespeitava nenhum ser humano. Ele lutava muito pela vida, com modéstia e simplicidade. Meu pai era exemplo de solidariedade. No Natal, levava brinquedos para crianças carentes e fazia uma ceia no dia 25 de dezembro, no interior do município de Viseu. Sempre que ele chegava nessas localidades, era uma grande alegria. Isso o deixava muito emocionado. A partir de agora, nós pretendemos levar adiante esse gesto solidário que ele nos ensinou”, declarou Brenda, filha de Angelino.
Angelino também era uma pessoa religiosa e amigo fiel, como lembra a professora de Química Hellen Santos. Ela também é professora do Sistema de Organização Modular de Ensino (Some), como o professor de artes. Juntos, trabalharam, entre 2014 e 2018, em várias escolas dos municípios de Santa Izabel do Pará (Região Metropolitana de Belém) e Maracanã. Os dois eram devotos de Nossa Senhora de Nazaré, a padroeira do Pará e motivo do Círio a cada outubro paraense.
"Não tinha obstáculo para ele. Era muito determinado, sonhador. O projeto dele era para dar visibilidade aos alunos dele. Era para transformar a realidade das comunidades. Mas outra lembrança que terei dele é que fazíamos, juntos, uma caminhada de Marudá a Belém para o Círio. São 220 quilômetros, que ele cumpria, todos os anos, para uma filha dele, que sofreu um acidente. Ele disse que enquanto tivesse saúde, iria fazer essa caminhada. Neste ano, vamos homenagear ele no grupo de romeiros. Foi um orgulho ter convivido com ele. Vou sentir saudades do meu amigo", diz a professora Hellen.
Texto: Lana Oliveira e Victor Furtado
Fotos: Ivan Duarte, Virginia Maria Yunes (foto de perfil) e acervo pessoal