História e Racismo
Por Nélio Palheta e Igo Soeiro (*)
Engana-se quem pensa estar isento da questão do racismo. Se não estiver envolvido por raça e família, estará pela historia da formação do povo brasileiro. E isso - hoje tão real quanto ontem - impõe um olhar especial na onda de protestos que acontece em várias partes do mundo, sendo possível que estimule se rever como essa questão perpassa a vida de 53,63% dos brasileiros. Apesar da violência contra negros e minorias, o Brasil parece envergonhado e cala-se diante da segregação racial escancarada pelo próprio governo.
O que Vigia de Nazaré tem que ver com essa história?
O antirracismo encontra links na história local, também. O ícone publicado no Facebook, posicionando Associação Literária Cinco de Agosto, fundada em 1871, contra o fascismo, é o mínimo neste momento de esgarçadura social que realimenta o chamado “racismo estruturado” - eco da excrescência que se pensava abolida no mundo: a escravidão, mãe do racismo. Ambos devem ser combatidos por quem preza o humanismo e uma sociedade justa, igual.
Os protestos, tirando o vandalismo, são expressões grandiosas emparedando governos, exigindo esse novo olhar sobre histórias de segregação e violência no mundo todo. Segundo o jornal Washington Post, a polícia dos EUA matou 1.014 pessoas naquele país em 2019. A maioria de negros. A ONG Mapping Police Violence aponta que, em relação aos brancos, é três vezes maior a chance de negros serem mortos pela polícia.
Segundo o site www.almapreta.com, do total de 7.952 pessoas mortas pelas policias, entre 2017 e 2018, os negros eram 75,4%, conforme dados do 13ª Anuário da Violência analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A sociedade brasileira precisa se posicionar consequentemente diante não só da carnificina policial, mas também contra um governo desavergonhado das suas políticas contra minorias, incluídos os índios. Inquietante, não é surpresa o silêncio oficial sobre a fala do presidente da Fundação Palmares (um negro), órgão federal encarregado da política nacional de defesa da população negra; Sérgio Camargo, no dia 2, disse que os negros brasileiros são “escória maldita”. A “maldita e fascista” fala exige um posicionamento veemente contra o fascismo que sustenta a segregação racial no Brasil.
A escravidão de africanos, endossada pela Igreja, fez parte, no passado, do modelo econômico mundial em séculos. Embora com outro desenho, parece atual, A Sociedade Literária Cinco de Agosto foi fundada no calor da libertação dos escravos norte-americanos, declarada em 1863, e sete anos antes da Lei Áurea, que neste dia 13 de maio completa 132 anos.
Em Vigia de Nazaré, o tema não aparece no imaginário local da atualidade, mas está presente no arquivo da Sociedade Literária, sobretudo nos acervos dos Cartórios Raiol e Vilhena, que estão sob sua guarda, e na biografia de seus fundadores. Num tempo em que a elite agrária vigiense tinha seus cativos, a questão da libertação dos escravos não pautou de imediato as sessões da agremiação; entre seus sócios, um diminuto número de proprietários possuía um ou dois escravos, e até comercializava negros a pedido de terceiros.
A Sociedade Literária tem um dos raros arquivos de documentos antigos, desde o século XIX, do interior do Estado; são centenas de documentos administrativos, registros civis, contábeis, processos jurídicos e políticos oriundos da Câmara de Vereadores de Vigia e de dois cartórios – estes, obtidos mediante processo do Tribunal de Justiça. O arquivamento, com técnica e metodologia, tem apoio da Universidade Federal do Pará (Ufpa), Instituto Federal do Pará (Ifpa), Universidade do Estado do Pará (Uepa) e da Câmara Municipal.
Um documento contábil registra que Engenho Santo Antônio da Campina, localizado na “Ilha do Sol” (hoje Colares), administrado pela firma Raiol & Irmãos, da qual era sócio Domingos Antônio Raiol, tinha 34 escravos. Raiol, o Barão de Guajará, não foi o único proprietário de escravos em Vigia; do inventário de Raimundo Antônio de Sousa Álvares, datado em 1842, consta que ele possuía 62 cativos - talvez o maior proprietário local de negros, no século XIX.
Um dos expoentes do movimento abolicionista em Vigia foi o professor, político, escritor e jornalista Bertoldo Nunes, desde quando secretariou os trabalhos da Cinco de Agosto, na década de 1870, e editou O Liberal da Vigia. Combativo, Bertoldo Nunes comemorou, em 1878, a vitória dos liberais nas eleições daquele ano registrando no cartório (o tabelião, Raymundo Nunes da Costa, era irmão de Bertoldo) a “Carta de Liberdade” do escravo de nome Basílio da Luz, de propriedade de Joaquim Manoel de Carvalho. Em Belém, Bertoldo Nunes continuou sua luta pela abolição, ao lado do irmão Gemino Seabra Nunes. Em 1881, ele atuou na Associação Filantrópica de Emancipação de Escravos e, ainda com o irmão, na Comissão Central de Emancipação de Belém.
Vilhena Alves, outro vigiense de renome da cultura, foi o principal responsável, em 1883, pela organização da festa da recém-fundada “Sociedade Emancipadora Vigiense 28 de Setembro”, que contava, inclusive, com um periódico – o nome da instituição foi simbólica alusão à data da publicação da Lei do Ventre Livre, que libertou os nascidos de escravos.
Antes de os negros serem libertados em Vigia, Antônio José Landi projetou um pelourinho – o “tronco” - para o Paço local. Não chegou a ser construído. O debuxo está no Arquivo Público do Estado. Quem teria contratado o arquiteto italiano?
O ex-presidente da Cinco de Agosto, Francisco Soeiro, recolheu dezenas de “letras de carimbó, e uma das canções chega a ser plangente ao chamar atenção para a vida de negros em Vigia - diz algo assim: “O negro estava no campo / (...) / O negro não vai apanhar / O negro não apanha / Não apanha, não apanha." / O negro não vai apanhar (...)”. A memória remanesce na antiga “Iha do Sol”.
Quando o abolicionismo se consolidou, os negros de Vigia foram alforriados. A memória da Família Monteiro Athayde registra que o patriarca, Francisco Abrahão Furtado Athayde (inscrito na associação literária já em meados do século XX), foi também um dos primeiros vigienses a registrar em cartório a libertação de seus negros.
O Brasil imperial via o combate à escravatura crescer, e o impacto das leituras libertárias alterou a postura da entidade literária que, na década de 1880, passou a “libertar escravos” em sessões comemorativas, como na data de sua fundação; a oficialização das alforrias davam-se em solenidades da “Cinco”.
A Sociedade, nascida sob as luzes do catolicismo, e com forte envolvimento político de seus membros, abrigou homens inspirados pela educação, artes, ciências – enfim, princípios de uma sociedade edificada no conhecimento. No ano em que foi fundada, ganhava expressão na França a “Belle Époque” (1871 – 1914) e em 1877 a entidade declarou-se laica, depois de se envolver diretamente, e até custear, com a festa do Círio de Nazaré. E às luzes da cultura e da política somou-se a abolição da escravidão. Havendo em seus quadros abolicionistas autênticos, a entidade literária inclinou-se francamente ao movimento defendido por juristas, políticos e escritores nacionais, como Machado de Assis, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Castro Alves – entre outros.
Ao tempo em que resgatam parte do passado local na questão da escravidão, estes registros têm o propósito de chamar atenção para o racismo do presente. Uma história indigna que se arrasta até agora.
Embora em meados do século XX o jornal da associação vigiense tenha sido simpática a Getúlio Vargas (o presidente que liderou a Revolução de 1930 e que instalou uma ditadura no Brasil), deve ser considerada como plataforma histórica de humanidades que formatam as liberdades transcendentais. Então, é natural que, agora, a Cinco de Agosto seja contra o fascismo paradoxalmente combatido pelo ditador, Getúlio Vargas, que sob o peso de circunstâncias geopolíticas, levou o Brasil à II Guerra Mundial contra Adolf Hitler e Benito Mussolini, a mais famosa dupla de fascistas dos novecentos.
A memória precisa estar viva neste momento da história contemporânea. A questão racial e a diversidade cultural precisam estar presentes no debate nacional, sob foco da educação e da ciência - incluída a História. Nos últimos cinquenta anos, as contribuições da Cinco de Agosto reforçam essa assertiva civilizatória, materializada na luta pela criação do então Ginásio Bertoldo Nunes (hoje escola pública), fundado em 1953, em ato na sede da entidade, e que homenageou um dos fundadores.
Com a criação do arquivo e a revitalização da biblioteca, a Cinco de Agosto reafirma sua postura democrática mediante a geração de subsídios para pesquisas, cursos, exposições de arte, lançamento de livros, exibição de filmes e parcerias com a Universidade do Estado do Pará (UEPA) e do Instituto Federal do Pará (IFPA).
* Nélio Palheta é jornalista e escritor e presidiu a Associação Cinco de Agosto.
* Igor Palheta Soeiro historiador, doutorando da Universidade Federal do Pará, é o atual presidente da Associação.
Nota dos autores: este artigo baseou-se nas seguintes fontes:
• O Liberal da Vigia, 1877-1880.
• Gazeta de Notícias, Belém, ed. 170, de 27 agosto de 1881, p. 01.
• Diário de Notícia, Belém, ed. 118 de 29 maio de 1883, p. 02
• O Liberal do Pará, Belém, ed. 225, 01 out de 1884, p. 02
• Arquivo da Sociedade Cinco de Agosto. Fundo: Cartório Raiol. Área: civil, Série-Inventários. Cx:01.
• Arquivo da Sociedade Cinco de Agosto. Fundo: Cartório Raiol. Área: civil, Livro de Notas do tabelião Raymundo Nunes da Costa (1877-1879).
• https://www.washingtonpost.com/graphics/2019/national/police-shootings-2019
• https://mappingpoliceviolence.org
• http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf
• https://oglobo.globo.com/cultura/leia-integra-do-depoimento-em-que-sergio-camargo-da-fundacao-palmares-chama-movimento-negro-de-escoria-24462253
• www.almapreta.com