México, 50 anos depois

Tri de ‘70: show em campo, ditadura e conspirações

Com futebol-arte e cinco camisas 10 em campo, seleção viajou com a certeza do título

Hoje, 21 de junho, faz exatos 50 anos da conquista do tricampeonato mundial no México, um título tão importante para o Brasil como a chegada do homem à lua na visão dos norte-americanos. Não é exagero a comparação: até os dias atuais, nunca se viu uma seleção de futebol jogar tão bonito como aquela, que teve cada partida associada ao balé, de tamanha beleza e plasticidade.

Foi assim na inesquecível decisão com a Itália (goleada por 4 a 1) e em jogadas geniais, sobretudo de Pelé – destaque para a tentativa de encobrir o goleiro Viktor, da Tchecoslováquia, logo na estreia, a defesa milagrosa do goleiro inglês Gordon Banks em cabeçada no canto, no segundo jogo, e o drible de corpo em velocidade sobre o goleiro Ladislao Mazurkiewicz, uruguaio filho de poloneses, pelas semifinais.

O tri, com seis vitórias em igual número de jogos com 23 gols marcados e dois sofridos, é associado diretamente ao jingle mais famoso do compositor e jornalista Miguel Gustavo Werneck de Sousa Martins, "Pra frente, Brasil", aquele dos “90 milhões em ação” que, conta a história, serviu para o regime ditatorial do País daqueles tempos tirar a atenção da população sobre as atrocidades que cometia.

O fato é que muito antes que inventassem o termo “galáctico” com Ronaldo e cia. no Real Madrid, o escrete nacional da Copa de 1970 já demonstrava na prática o que isso significava: o incomparável e revivido talento brasileiro em campo, que colocava (temporariamente) pá de cal no “complexo de vira-lata”, parecia nem ser deste mundo.

Quem não assistiu aos confrontos no México ou pela TV em transmissão em preto e branco – mas com a garantia de replay com câmera lenta – a magia e fantasia digna de um Harry Potter, de um Houdini, de um David Copperfield, de um Mandrake, deve estar se lamentando não existir de verdade a máquina do tempo de H. G. Wells ou o DeLorean DMC-12 da trilogia do cinema “De Volta para o Futuro”.

O jornalista Teixeira Heizer, em seu livro “O Jogo Bruto das Copas do Mundo”, relata que, para os jogadores, levantar a Taça Jules Rimet eram favas contadas, dada a consciência do grupo sobre o próprio potencial, embora o futebol não seja uma “ciência exata”. “No avião que conduzia Pelé e seus companheiros havia a certeza do êxito”, diz ele no capítulo “Pelé encanta o mundo com futebol mágico”. “O time era fortíssimo e ergueria novamente o prestígio do futebol nacional, tão humilhado, quatro anos antes, na Inglaterra”, completa a seguir o autor.

Na obra, há uma citação de uma jovem mexicana “vestida em soirée”, identificada como Carmen Cabrejos, que “refutou” o cantor Wilson Simonal durante show em hotel no solo mexicano ao anunciar os “campeões do mundo em carne e osso”: Ellos no tienen ni carne ni huessos. Ellos son dioses” (“Eles não têm carne nem ossos. Eles são deuses”).

Compreensível interpretação para um time que tinha um total de cinco camisas 10 originais em campo. Jairzinho (Botafogo), Tostão (Cruzeiro), Rivelino (Corinthians), Gerson (São Paulo) e ninguém menos que Pelé (Santos). “Não haverá dificuldades. É o jogo dos números 10”, cantara a pedra Jairzinho, que marcou em todas as partidas – na verdade, ele balançou a rede sete vezes em seis jogos.

Em sua crônica genial “Dragões de espora e penacho”, do livro “À Sombra das Chuteiras Imortais”, Nelson Rodrigues enalteceu o triunfo brasileiro como “a mais bela vitória do futebol mundial em todos os tempos”. Mais: “Desde o Paraíso, jamais houve um futebol como o nosso”, e que “o Brasil ganhou de todo mundo andando, simplesmente andando”.

A consagração brasileira em campos mexicanos lavou a alma de Nelson, que não poupou colegas de profissão da época, críticos implacáveis do técnico João Saldanha, o “João Sem Medo”, como costumava chamar, bem como a própria seleção, que não dera lá espetáculos nas eliminatórias. “Perdi a conta das vezes em que João foi malhado como um judas de sábado de aleluia”, ilustrou.

João Saldanha foi destituído do cargo por uma razão até agora não esclarecida, assumindo Zagallo, mas as “feras”, não jogadores, como ficaram conhecidos os atletas, foram forjadas por Saldanha. A sua saída acendeu de vez a revolta de Nelson Rodrigues, que a classificou de “catástrofe”, e elegeu como culpados justamente os “entendidos”, a quem chamou de “hienas, chacais e abutres” pelas conspirações.

“Diga-se de passagem que a maioria da imprensa era contra; e assim a quase unanimidade do rádio e da TV. Mas o povo estava com o João. Por onde passava, o homem das esquinas e dos botecos fazia-lhe uma festa total. O chauffer de praça dizia-me, de olho rútilo: ‘Agora vai!’. E repetia, com o lábio trêmulo: ‘Agora vai’”.

A degola do treinador, meio século após, tem muitas especulações. Uns disseram que foi porque contrariou o presidente do Brasil, Emílio Garrastazu Médici, que teria insistido na convocação de Dario, o “Dadá Maravilha”, homem-gol do Atlético Mineiro. “Vamos fazer um acordo. Eu não escalo o seu ministério e o senhor não se mete com minha seleção”, teria dito ao mandachuva e general.

Em inflamada entrevista à “Placar”, em 1970, publicação que nasceu em março daquele ano, João Sem Medo afirmou desconhecer o motivo pelo qual deixou o comando do selecionado pouco tempo antes da Copa. Além do improvável bate-boca com Médici, outras razões foram levantadas, como a declaração que teria feito de que Pelé não enxergava mal devido a uma miopia.

“De repente surgiu uma crise. Se perguntarem hoje por que fui demitido, palavra de honra, [...] que não sei. Disseram-me que a comissão técnica estava dissolvida. Eu respondi: ‘Não sou sorvete para ser dissolvido”, disse no depoimento à revista, intitulado “A fera das feras ferida”. 

Gaúcho de Alegrete, João Saldanha é um ícone do rádio, jornal e TV como comentarista. No “Jornal do Brasil”, suas crônicas faziam muito sucesso. A Copa de 1982, na qual foi enterrada o futebol-arte na vingança italiana, causando um trauma só comparável à perda do caneco em 1950 para o Uruguai no Maracanã, ele apontou os principais erros e defeitos cometidos.

“O erro não foi não ganhar. O erro foi o de ganhar antes. Não se ganha Copa do Mundo com musiquinha e batendo bumbo”, espetou. Seus textos no jornal acabaram originando o agridoce e imperdível livro “O trauma da bola – A Copa de 82 por João Saldanha”. Ele morreu em 1990, na Itália, durante a cobertura da 14ª Copa do Mundo, a 12ª que acompanhava.


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