Educação Superior
Um grito estridente ecoou na comunidade do Carananduba, na região do baixo-tocantins, município do Acará, quando a Universidade Federal do Pará (UFPA) divulgou o listão do vestibular especial para quilombolas e indígenas.
Quatro membros da comunidade quilombola foram aprovados e vão cursar o tão sonhado ensino superior, vencendo todas as barreiras, adversidades e o atual cenário econômico e social do país.
Eles são os primeiros da comunidade Carananduba a irem pra universidade e não querem desperdiçar essa oportunidade, pois planejam ser referências para outros companheiros do local, que é cercado de mata e igarapés e produz o que eles dizem ser “o melhor açaí da Amazônia.
Maria Lúcia Guerreiro, 50 anos, foi aprovada para a faculdade de Dança; José Carlos Galiza, 57 anos, vai cursar Ciências Sociais; Monique Guerreiro Neves, 25 anos, chega à UFPA para cursar Arquitetura e Urbanismo e Magno Guerreiro Siqueira, 26 anos, vai cursar Engenharia Mecânica.
Maria Lúcia é presidenta da Associação dos Quilombolas de Carananduba e mãe da Monique. Magno é sobrinho da presidenta. Já José Galiza é um dos coordenadores da Malungu, associação que reúne várias entidades que representam comunidades quilombolas no Pará. Todos ativistas ambientais e sociais.
A comunidade quilombola do Carananduba é composta por cerca de 70 famílias de agricultores e extrativistas e integra a região de descendentes de pessoas que fugiram da escravidão, juntamente com outras 16 comunidades quilombolas que foram essa região.
Juntas, as famílias produzem mandioca - fazem farinha, goma, farinha de tapioca, tucupi -; banana, açaí e também trabalham no extrativismo de diversas frutas regionais, como açaí, cupuaçu, bacuri, tucumã, castanha-do-pará, entre outras.
“Minha perspectiva é ajudar a minha comunidade”, garante Magno Guerreiro, futuro engenheiro mecânico.
Ele conta que escolheu a engenharia porque acredita que as máquinas podem auxiliar o trabalho dos agricultores familiares na comunidade Carananduba, facilitando e melhorando a qualidade de vida e laboral no local.
Magno concluiu o ensino fundamental na Escola Geraldo José de Lima, localizada noutra comunidade da região, no KM 3 da Alça Viária. Mas, para conseguir estudar o ensino médio, como tudo na vida dos quilombolas locais, foi uma verdadeira maratona.
O município de Acará só dispõe de escola estadual de ensino médio na sede da cidade. Os agricultores quilombolas precisaram se submeter ao Sistema de Organização Modular de Ensino (Some), em salas de aulas cedidas e improvisadas pela Secretaria Municipal de Educação do Acará.
Porém, nem sempre havia salas de aulas disponíveis para os estudantes do ensino médio.
Pandemia piorou a educação para os quilombolas
“Na nossa comunidade não temos sinal de internet para o estudo online. Temos celular, mas só usamos quando estamos na sede da cidade ou na capital”, explica Magno Guerreiro.
Mesmo com tantas adversidades, ele e os três companheiros aprovados no PSEspecial não se renderam. Estudaram com o material do Some por conta própria, sem sequer terem feito convênio ou cursinho pré-vestibular. “Essa aprovação é só o primeiro passo. Queremos batalhar pra nos manter na universidade e ajudar nossa comunidade ainda mais”, festeja o quilombola.
“Foi dançando que eu me reergui”, conta a presidenta da Associação quilombola da comunidade do Carananduba, Maria Lúcia Guerreiro.
Ela perdeu o pai em dezembro passado e quando a tristeza tentou abatê-la, Maria conta que se espelhou na irmã, que após um período no alcoolismo, ficou depressiva e chegou a pesar 90 quilos. Mas, atualmente pesa 55 quilos e através da dança alcançou outro sentido pra vida.
“Minha irmã dá aula de dança e eu gosto muito de dança afro, por isso, optei pela faculdade de Dança. Inicialmente, eu me inscrevi no processo seletivo para dar uma força aos meninos mais novos, mas estou muito feliz em ter sido aprovada. Quero trazer a dança para minha comunidade”, sonha Maria Lúcia.
No quilombo, como explica a líder da comunidade, as dificuldades são em todas as áreas, além da luta pela educação pública para todos.
Quando alguém adoece na comunidade, é preciso pagar R$ 30 para levar o doente de moto e é mais viável ir pra Ananindeua que para a sede do município. “Queremos o serviço público de qualidade na comunidade. Aqui não temos internet, energia é de péssima qualidade, tão fraca que é difícil até rodar o ventilador”, conta Maria Lúcia.
Ela explica, que a comunidade precisa de muitos serviços, o principal deles um porto para escoar a produção. Também é preciso trabalhar mais cidadania nas comunidades quilombolas, que segundo a líder do Carananduba, muita gente ainda não tem os documentos necessários.
Mas, o fato de um grupo da comunidade quilombola já ter chegado à UFPA é um passo importante na girada que eles pretendem dar para alcançar melhor qualidade de vida às famílias locais. “O sonho é para ser sonhado e realizado”, afirma Maria Lúcia Guerreiro.
Furo da bolha
O coordenador da Malungu, que agrega cerca de 70 entidades quilombolas, afirma que o fato dele e de seus três companheiros da comunidade Carananduba entrarem para universidade é “um furo da bolha”.
Segundo José Carlos Galiza, na sua comunidade ele só conseguiu estudar até a 4ª série do ensino fundamental, pois não havia como continuar os estudos na etapa normal sem escolas regulares e com a comunidade empobrecida, as famílias optam em que as crianças e adolescentes trabalhem para sobreviver.
Há apenas cinco anos, ele se submeteu ao Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e concluiu a segunda etapa do ensino fundamental. Em 2021, José Carlos Galiza concluiu o ensino médio pelo ensino público modular e em janeiro deste ano participou do PSE especial para quilombolas da UFPA com êxito.
Por falta de apoio, de estrutura para estudar, ele conta que repetiu a 4ª série quatro vezes. Abandonou os estudos, ingressou no ativismo pela preservação das comunidades quilombolas e agora conseguiu chegar ao ensino superior, ingressando na UFPA em primeiro lugar no curso de Ciências Sociais.
“É muito desafio. Foi uma luta para entrar e temos consciência que também vai ser para permanecer”, acentua.
Ele acredita que os estudos em ciências sociais, ajudarão a qualificar o debate na sua comunidade e seu compromisso também é levar as famílias quilombolas da região do baixo-acará a defender seus direitos. “Nossa luta será mais fortalecida com o conhecimento acadêmico. Sempre fomos nós por nós. Agora teremos mais conhecimento e poder de argumentação”, assegura o líder quilombola.
Resistência pela educação
A professora de Geografia e Estudos Paraenses da rede municipal de educação do Acará, Vilma Pantoja, ficou extremamente emocionada ao encontrar os ex-alunos na sede da comunidade quilombola do Carananduba e comemorar com eles a entrada na maior universidade pública da Amazônia.
Vilma participou do I Encontro de Ouvidorias e Defensores e Defensoras de Direitos Humanos da Amazônia, realizado na semana passada em Belém e no Acará.
Os estudantes a abraçaram agradecidos pela contribuição dada aos seus estudos.
“Apesar da dificuldade, de toda adversidade que eles enfrentam, essa é a prova que a educação traz resultados e de que vale a pena”, garante a professora.
Ela conta que os professores sabem da batalha que as comunidades quilombolas, localizadas às margens da Alça Viária, enfrentam para estudar.
“Com o crescimento das matrículas no ensino fundamental em 2020 e 2021, não sobram salas de aula vazias pra eles estudarem no Some (ensino modular), que é a única alternativa, mesmo na pandemia, já que essa região não dispõe de internet”, contou a professora.
Vilma Pantoja afirma que os estudantes quilombolas são guerreiros e que acredita que a vida deles e da comunidade vai mudar com o ensino superior.
Resistência pela preservação da cultura e do meio ambiente
As comunidades quilombolas do baixo-tocantins enfrentam um dos maiores desafios na atualidade, além dos problemas cotidianos pela sobrevivência.
Com o fim do aterro sanitário em Marituba previsto para 2023, há previsão de que a empresa implantará um novo aterro em uma área ao lado das comunidades quilombolas, próximo do rio Genipaúba, extremamente importante para as famílias quilombolas agricultoras das margens da alça viária.
“Nossas comunidades aqui têm carência de tudo. Se não trazem coisas boas para cá, lixo a gente não quer”, assegura o líder José Carlos Galiza.
Ele acentua, que os problemas das comunidades são muitos, mas que o sonho de todos os quilombolas do baixo-tocantins é manter a floresta em pé.
Galiza ressalta que as comunidades, apesar de viverem da agricultura e do extrativismo, o poder público municipal e estadual não lhes disponibiliza assistência técnica ou alguma tecnologia. “Ainda plantamos como nossos ancestrais. Mas, não vamos permitir que lixo proveniente de consumo da capital e região metropolitana afete nossas comunidades”, garante.
“Não temos nada a ver com esse lixo”, complementa o líder quilombola. José Galiza afirma que tanto os gestores do executivo municipal, quanto os vereadores do Acará afirmam, que não vão ceder às pressões da capital.
“Eles nos asseguram que a Prefeitura Municipal não vai conceder a licença ambiental para esse aterro”, finaliza José Carlos Galiza.
Fonte: Ascom/Ouvidoria Externa DPE/PA
Fotos: Amarilis Oliveira/Ascom Ouvidoria DPE/PA