Sons das quebradas da Amazônia
O projeto “Stereocidade” acaba de divulgar os artistas selecionados para integrar o disco coletivo que irá reunir a potência criativa da nova música nascida nas quebradas da Amazônia. Sob curadoria de Ruy Montalvão - artista e produtor que nos anos 2000 lançou holofotes sobre a obra de mestres como Laurentino e Dona Onete, os alçando a palcos no Brasil e no mundo - o álbum, que começa a ser gravado na segunda-feira (23), traz sete talentos autorais da periferia da Grande Belém, em sons plurais, desde carimbó, samba, rock, blues, hip hop a toadas de boi-bumbá.
A potência criativa da arte forjada na periferia é um dos pontos fundamentais da cultura amazônica contemporânea. Do brega à guitarrada, os movimentos musicais nascidos nos subúrbios se tornaram ultrapopulares e marca identitária da estética do Norte.
“A minha inquietação no Stereocidade é virar o holofote para o artista das bordas da cidade até que o centro do mundo os percebam. Aquele artista que tem um potencial imenso, mas por conta da vulnerabilidade artística, acredita que por estar inserido dentro de um contexto urbano e social desfavorável, teme que nunca terá seu trabalho reconhecido e acaba desistindo de seguir em frente em sua carreira musical”, diz Ruy Montalvão, idealizador do projeto.
Atento a este fenômeno e personagem direto desta cena, Ruy tem uma trajetória importante na música paraense. Ao lado de Carlinhos Vaz e Erik Martinez, participa, em 2001, do nascimento do Coletivo Rádio Cipó, núcleo de produção de mídia sonora e pesquisas experimentais aliado à tecnologia de áudio digital caseira. Com o grupo, Montalva tocou em palcos nacionais e internacionais e apresentou ao mundo a cantora de carimbó chamegado Dona Onete e o quase centenário roqueiro Mestre Laurentino. Com o término do Coletivo Rádio Cipó em 2013, Ruy inicia seu projeto solo e a passa assinar como Montalva, uma homenagem à família materna e ao tio músico Roberto Montalvão, violonista das antigas.
“O Coletivo Rádio Cipó, grupo no qual fiz parte, foi um grande exemplo de propor o diálogo dos saberes entre artistas da periferia e a galera que sacava de equipamentos eletrônicos. Foi nessa perspectiva que apresentamos Dona Onete, Mestre Laurentino e Mestre Bereco para o grande público. Imagine quanta gente está por aí e nunca gravou uma música? Nesse sentido, acredito que políticas culturais relevantes podem e devem fomentar a potência de artistas residentes na periferia gerando a divulgação de seus saberes artísticos e consequentemente ter uma outra perspectiva e possibilidade”, diz.
O “Stereocidade”, contemplado no Prêmio Fundação Cultural do Pará de Incentivo à Arte e à Cultura, propõe a produção de um disco digital com faixas inéditas, criado, gravado e divulgado com a participação direta de músicos residentes em bairros da periferia de Belém, especificamente nos locais que integram o projeto Territórios da Paz, na região metropolitana: Cabanagem, Terra Firme, Jurunas, Guamá, Bengui e Condor, em Belém; Icuí-Guajará, em Ananindeua, e Nova União, em Marituba.
Os sete artistas foram selecionados após chamada pública, que atraiu dezenas de inscritos. “O projeto é um pequeno vislumbre do que existe nessa Amazônia urbana periférica, em especial, na Grande Belém. Ele precisa ser ampliado. Muita gente boa ficou de fora, e isso dá certa angústia, mas também serve de combustível porque demonstra o que já sabemos: há um potencial enorme a ser apoiado”, diz Ruy Montalvão.
Conheça os selecionados
A oportunidade da produção e registro sonoro que será veiculado em todas as plataformas digitais busca dar visibilidade a artistas que estão “fora do eixo”. O elenco traz Beni Oliver (Terra Firme), Jarede Almeida (Marituba), Margoal (Guamá), Nixon Jr (Benguí), Rafaela Travassos (Icuí-Guajará), Ruth Clark (Cabanagem) e Vinícius Leite (Condor).
Beni Oliver é criador do Movimento Caixa Preta, que há 13 anos é resistência periférica por meio do hip hop. Com composições em defesa da classe trabalhadora, Beni já se apresentou em festivais pelo Brasil.
Jarede Almeida é músico e produtor. Atuou no grupo Coletivo Rádio Cipó por quase dez anos, integrando o time do CD “Formigando na calçada do Brasil", que trouxe Dona Onete e Mestre Laurentino. Com o disco, a banda circulou pelo Brasil e pela Europa. Em 2013, grava seu primeiro disco solo, com canções inspiradas no sentimento paterno, intitulado “canções de pai para filha”.
Artista deficiente visual, Margoal tem a vida dedicada à cultura popular. Ao lado do esposo, Marcelino Galvão, criou o Boi Juruguá, e compõem toadas de boi. Carimbozeiro e percussionista, Nixon Junior é um dos fundadores do grupo cultural Canto do Aracuã, criado em 2017. Rafaela Travassos tem uma década de carreira como sambista, e já se apresentou em shows de grandes artistas do gênero, como Fundo de Quintal, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho.
Ruth Clark MC é rapper, ativista e compositora. Selecionada nos Festivais Elas No Comando, SeRasgum e Rio Oricuri, suas rimas exaltam o poder ao povo preto e sua vivência de mulher nortista. Vinícius Leite é músico e compositor. O blues é sua grande paixão. Estudou no Curro Velho com Nego Nelson, grande nome da música paraense e um dos maiores violonistas do Brasil. Tem parcerias com artistas como Joelma Kláudia, Messias Lyra, Dand M e Tonny Lisboa.