Cinema

O mítico Marajó, a maior ilha fluviomarinha do mundo e berço de uma das mais complexas civilizações pré-cabralinas do Brasil, protagoniza o episódio de abertura da série "Amazônia Ancestral", roteirizada e dirigida pela cineasta Zienhe Castro. A equipe acaba de concluir as filmagens nas cidades marajoaras de Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari para a primeira etapa da produção, composta por mais cinco capítulos que documentam os saberes tradicionais nas várias Amazônias: o território ancestral como fonte de identidade, alimento, filosofia e cura. Uma relação que atravessa os povos da floresta, orienta seu futuro e aponta horizontes para crises globais do mundo contemporâneo na relação homem e natureza.
“Amazônia Ancestral” vai navegar também por Santarém, Oriximiná, Alenquer, Monte Alegre, no oeste do Pará, e pela região do Tapajós. E para além da Amazônia paraense, irá até o Acre, Amazonas e Amapá. Os documentários traçam o panorama das diversas práticas milenares, artesanais e de produção da cultura amazônica, seja das cerâmicas, do uso de plantas medicinais e gastronômicas da floresta, seja em suas técnicas de cultivo: um mergulho profundo no patrimônio imaterial que sedimenta e legitima a expressão dos povos da região.
A pesquisa aborda a riqueza estética da cultura amazônica, desde as origens do grafismo étnico e sua paleta de cores forjada em corantes naturais, aos artistas contemporâneos, indígenas ou não, que se alimentam dessas referências.
As origens do modo de viver na floresta, os apagamentos dessa cultura e sua atualização na vida contemporânea são os pontos centrais da série, oferecendo ao público uma perspectiva realista da importância de preservação e transmissão dos saberes ancestrais para manter homem e floresta em pé.
“A série representa um resgate das minhas próprias origens e dos saberes que definem e dos desafios impostos às populações amazônicas. Cartografar o conhecimento que resiste às ameaças externas é mais que um propósito: é uma missão de vida para ampliar a voz de quem precisa se tornar o protagonista da própria história de luta e resistência”, diz Zienhe Castro, uma das mais importantes cineastas paraenses, diretora de sete filmes, entre documentários e ficção, e fundadora do Festival Pan-Amazônico de Cinema – Amazônia FiDoc, que promove a difusão da cinematografia dos nove países pan-amazônicos.
Marajó gigante
Arquipélago banhado pela imensidão dos rios Amazonas e Tocantins de um lado, e pelas águas salgadas do Oceano Atlântico de outro, o Marajó é a maior ilha fluviomarinha do mundo. Habitado muito antes da chegada dos portugueses, o Marajó foi povoado por indígenas criadores de uma cerâmica refinada e de uma iconografia única, de mais de 3.500 anos.
O fio condutor do episódio dedicado ao Marajó é o casal Cilene Guedes e Ronaldo Guedes. Ativista e produtora cultural da AMPAC (Associação dos Moradores do Bairro Pacoval), Cilene atua na defesa, manutenção e valorização dos conhecimentos tradicionais do Marajó. Nascido em Soure, artista e pesquisador dedicado, Ronaldo se baseia nos principais vestígios da cerâmica marajoara e a reinterpreta em suas obras, fazendo de si uma ponte viva entre o passado e o futuro.
O capítulo nos leva até o único museu caboclo do mundo, o Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, um dos pontos turísticos mais importantes do Pará e referência cultural e científica sobre a ilha. Interativo e com uma museologia autoral, diferente de qualquer outra, o espaço reúne centenas de peças arqueológicas, artefatos, cerâmicas, verbetes e registros do modo de viver e existir do povo do arquipélago.
A partir daí, o público é conduzido pelas principais tradições e saberes pulsantes da ilha, e os legados que os encontros das culturas europeia, indígena e negra promoveram: os sincretismos religiosos e o surgimento de um ritmo próprio, o carimbó, que também é abordado pela perspectiva tradicional e pela feminina, que hoje rompe os preceitos patriarcais e se consolida como um de seus fortes elementos.
O episódio atravessa também o legado indígena na cultura gastronômica típica da ilha, e sua visão de harmonia com a região, um legado e uma lição de sustentabilidade para o mundo atual.
A série é um desdobramento de “Ervas e Saberes da Floresta”, primeiro documentário de Zienhe Castro, lançado em 2012. Mas essa trajetória começa muito antes. São 20 anos de pesquisa e imersão no universo ancestral da Amazônia. A cineasta conta que tudo começou por uma necessidade de entender melhor a própria identidade cabocla e tudo que habitava em suas memórias de infância no Marajó.
“Os banhos de rio, a coleta de frutas no meio da floresta, os brinquedos de miriti, os hábitos de comidas da floresta que meu pai nunca abandonou, os banhos de cheiro feito com ervas, a minha avó benzedeira e sua folha de arruda atrás da orelha, a cura da garganta inflamada com o dedo da minha mãe embebido numa broca de algodão com mel e copaíba… São muitos saberes. Essa cultura cabocla, esses conhecimentos ancestrais me atravessam com toda a sua potência. Tenho muito respeito por toda essa sabedoria e o meu propósito na série é valorizar e contribuir com a salvaguarda desses conhecimentos”, diz.
A Amazônia é mulher
Desde o episódio inicial, a série é regida majoritariamente por vozes de mulheres ribeirinhas e caboclas. “São muitas guardiãs, mulheres inspiradoras que carregam a força dessa cultura”, resume Zienhe. Uma delas é Dona Roxita que enfrenta o patriarcado e a intolerância religiosa para ser pajé na ilha do Marajó, e serve de guia nos mistérios da Pajelança Cabocla - uma vertente do xamanismo indígena e que é documentado no primeiro episódio da série “Amazônia Ancestral”.
O episódio traz ainda Mestre Baixinha e sua mãe, que carregam a tradição do boi-bumbá e do carimbó; a nova geração de mestras da cultura popular, representada por Milene Tavares, a primeira mulher curimbozeira da região e que assume o protagonismo da percussão do carimbó ao conduzir o curimbó - tambor feito com um tronco escavado e que é tocado com as mãos; e traz também o depoimento de Dona Socorro, que, desde menina faz coleta de turu (molusco gelatinosos encontrado dentro de troncos na Amazônia usado para fazer caldos “afrodisíacos”) e já está na terceira geração de coletora nas praias e manguezais de Soure.
O episódio inaugural da série tem roteiro e direção de Zienhe Castro; co-roteiro de Manoel Leite, Lúcia Leão; Graciela Guarani e Takumã Kuikuro; e consultoria e pesquisa de Felipe Pamplona.