Dia Mundial da Juventude
“Houve um ano em que eu perdi incontáveis amigos. Só recebia notícias de amigo morto, amigo preso. Eu fui uma exceção, e essas pessoas, a regra”, diz Daniel ADR, rapper destaque da cena de música urbana feita na Amazônia. O relato do artista ilustra uma história que se repete em tragédia no Pará. Um estudo realizado em 8 estados do Brasil em 2022 colocou o estado com o segundo maior percentual de negros mortos em operações policiais: foram 93,90% dos casos em que havia identificação da raça ou cor das vítimas. O Pará só ficou atrás da Bahia, com 94,76%. O cenário é lembrado no contexto do Dia Mundial da Juventude, sábado (30).
A violência contra a juventude preta é o fio condutor de “Black Christ”, disco que Daniel ADR lança na sexta-feira Santa (29), data simbólica para a provocação que conceitua o álbum. Provocativo, Daniel ADR coloca em cena um Cristo longe da mitologia que o faz loiro e de olhos azuis. De pele escura, mestiça, Jesus se parece com cada um dos jovens periféricos que tombam todos os dias vítimas da violência, da discriminação, da falta de oportunidade. “São jovens que poderiam ser salvadores das suas casas, das suas famílias, e acabam se perdendo pelo caminho, caindo pro crime, pro tráfico”, diz. O Cristo preto humaniza o corpo preto. “Por que quando Cristo é branco, a morte dele choca, mas quando é um preto, ninguém chora? Por que quem é contra o aborto aplaude o assassinato de gente preta? Que cristianismo é esse, afinal? ”, questiona.
O lançamento marca os dez anos de carreira do artista e traz parcerias com nomes importantes e em ascensão da música urbana periférica do Norte do país, além de faixa com Lia de Itamaracá, mulher negra fundamental na cultura popular e a maior cirandeira do Brasil. O trabalho tem o patrocínio da Natura Musical e produção executiva da Psica Produções.
Em entrevista ao Rede Pará, Daniel ADR fala sobre a arte como resistência, e sobre a necessidade de teimar em sonhar e conquistar os objetivos que o move. Confira o bate-papo:
1. O que é Black Christ? Fala desse conceito do álbum.
Black Christ é mais do que um título, é uma afirmação de identidade e resistência. É uma metáfora que transcende as imagens habituais, desafiando essa imagem eurocêntrica de Jesus Salvador como um homem branco, de olhos azuis. E mostrar o Cristo preto humaniza o corpo preto. É uma provocação: por que quando Cristo é branco, a morte dele choca, mas quando é um preto, ninguém chora? Por que quem é contra o aborto aplaude o assassinato de gente preta? Que cristianismo é esse, afinal? Black Christ dá voz às realidades das periferias amazônicas. O álbum mergulha na encantaria amazônica, na luta diária dos jovens negros e periféricos, e na busca por justiça e redenção.
São os vários cristos contemporâneos que fazem seus milagres diariamente para sobreviver, pra serem os salvadores de suas famílias, e ao mesmo tempo enfrentam a crucificação, seja a partir de um projeto de sociedade que mata e encarcera a população preta, ou através do cancelamento seletivo.
2. Daniel, você relata que já perdeu muitos amigos e parentes. Uns, se perderam para o tráfico, outros para depressão, outros foram presos e alguns foram mortos. O quanto Black Christ é influenciado por esse contexto, e o quanto o teu disco é uma reação a isso?
É uma parte intrínseca do disco. Houve um ano em que eu perdi incontáveis amigos. Só recebia notícias de amigo morto, amigo preso. Eu fui uma exceção, e essas pessoas, a regra. Perdi muitos amigos e familiares para diferentes situações, desde o tráfico até a depressão. São jovens que poderiam ser salvadores das suas casas, das suas famílias, e acabam se perdendo pelo caminho. Black Christ é uma resposta a essas perdas, uma forma de honrar suas memórias e lutar contra as injustiças que os levaram. É uma expressão de esperança e resiliência diante das adversidades.
3. Conta melhor sobre ter a Lia de Itamaracá no disco, com uma música inédita feita especialmente pro Black Christ.
É uma honra pra mim ter Lia de Itamaracá no meu álbum. E fica ainda mais especial porque a faixa é um texto inédito, feito para o disco Black Christ. Eu acredito que a gente, que é mais jovem, que faz arte hoje, a gente deve muito a essas pessoas que vieram antes. Se hoje ainda é complicado, é polêmico, tem barreiras, para falar sobre afro-religiosidade, eu tenho certeza que essas pessoas que vieram antes enfrentaram muito mais dificuldade. Então precisa ter essa relação de mais respeito, de gratidão, de reconhecer o legado. A faixa em parceria com Lia se chama “Sonho”, e fala das dificuldades que o racismo impõe, de todos os problemas, mas que a gente precisa ir atrás dos nossos sonhos, a gente precisa ir atrás da força pra conquistar os nossos objetivos. E é muito inusitado ter Lia de Itamaracá, uma figura que é tão importante pra cultura popular nordestina, a maior cirandeira do Brasil, fazer parceria comigo, um cara que faz rap e trap na periferia da Amazônia. Ela traz o lirismo, a sabedoria, a ancestralidade do nordeste, misturado a um contexto de música urbana, que é o meu trabalho. Então é um encontro de ritmos, de estilos, e um encontro de gerações de artistas pretos e de resistência.
4. Como é fazer rap, música urbana na Amazônia periférica? O rap e trap feito aqui tem um traço próprio?
Fazer arte no Brasil já é complicado. E fazer arte aqui no Norte é mais ainda. Primeiro porque a gente sofre uma série de invisibilizações históricas né? Produzir música aqui é mais caro. É muito complicado fazer um trabalho com alta qualidade tendo pouco recurso. Apesar disso, a gente conseguiu fazer esse trabalho reunindo muita gente talentosa. Desde a concepção visual. A gente tem a Nay Jinknss, uma das fotógrafas de maior destaque da nova cena nacional; o Normando, que é um estilista paraense que também está despontando no Brasil; temos o Labo Young, um artista genial que já tem chamado a atenção da crítica especializada em moda pela criatividade de fazer figurinos com a fauna amazônica. E o disco em si traz ainda parceria com a Anna Suav, de quem eu sou fã; tem o jovem Leo, que é um cara na nova geração do rap e o trap que é muito talentoso; tem o Leonardo Pratagy, que é um músico da cena alternativa, e que trouxe todo um molho pop e rhythm and blues pro disco; e tem a Lia de Itamaracá, que já falei a respeito.
Então o rap e o trap feito aqui na Amazônia traz um sotaque diferente, uma autenticidade que contribui muito pra cena nacional da música urbana, e merece mais atenção, mais visibilidade. Aqui nós temos um jeito de falar, gírias, termos, vocabulário que fala diretamente da realidade da periferia do Norte. São temáticas e vivências que são muito diferentes de artistas do sul e do sudeste.
Serviço
Ouça o disco "BLACK CHRIST", de Daniel ADR: https://onerpm.link/879741372249