BASTIDORES POLÍTICOS

Cacique Raoni entregou “sentença” contra Ferrogrão à Macron e Lula em Belém

Liderança indígena se manifestou contra a ferrovia que cortará a floresta amazônica do Pará ao Mato Grosso durante homenagem do presidente francês.

Durante cerimônia em que Emmanuel Macron, presidente da França, condecorou o cacique Raoni Metuktire, líder do povo Kayapó (MT), com a honraria Legião da Honra de seu país, a liderança indígena entregou um documento à autoridade francêsa e ao presidente  do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, com denúncias contra o projeto da Ferrogrão (EF-170), bem como seus impactos socioambientais. Trata-se da sentença do Tribunal Popular realizado por representantes dos povos indígenas, comunidades tradicionais, organizações e movimentos sociais do Pará e Mato Grosso no dia 4 de março, em Santarém.

“Presidente Lula, subi a rampa com o senhor e gostaria de pedir que vocês não aprovem o projeto de construção de ferrovia entre Sinop (MT) e Miritituba (PA), mais conhecido como Ferrogrão”, reivindicou o cacique antes da entrega, durante  cerimônia realizada na Ilha do Combu, em Belém, no último dia 26 de março. 

A sentença traz cinco argumentos de acusação: violação do direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé; estudos falhos e subdimensionamento dos impactos e riscos socioambientais conexos; aumento da especulação fundiária, grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e conflitos fundiários; e favorecimento indevido dos interesses das empresas transnacionais Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi.

Sentença do júri - Na sentença, os povos indígenas e tradicionais declaram: “Considerando os graves vícios no planejamento, as violações dos direitos da natureza e dos povos e comunidades tradicionais da região, bem como a necessidade de resguardar os biomas brasileiros e o futuro do planeta dos interesses de empresas transnacionais multibilionárias, este Tribunal Popular determina o  cancelamento imediato e definitivo do projeto da Ferrogrão por parte do Governo Federal e a devida responsabilização da ADM, Bunge, Cargill, Amaggi e Louis Dreyfus pelos danos incorridos contra a natureza e os habitantes da região do Tapajós e do Xingu", traz o documento da sentença final

Além disso, o Tribunal também determinou que o Governo Federal promova mudanças estruturantes nos instrumentos e processos de tomada de decisão no planejamento de infraestrutura, fortaleça a governança territorial, e  promova uma nova visão sobre a infraestrutura para a Amazônia, reiterando a necessidade de consulta livre, prévia e informada aos povos originários e tradicionais para todo e qualquer empreendimento que afete direta e indiretamente povos indígenas e comunidades tradicionais. A sentença foi assinada por 40 organizações de povos indígenas, tradicionais e movimentos sociais.

RESUMO DOS ARGUMENTOS DA ACUSAÇÃO

Violação do Direito à Consulta

O tribunal destacou que, desde o início do processo de idealização da Ferrogrão, as comunidades indígenas e tradicionais afetadas pelo projeto jamais foram consultadas. As testemunhas alegaram ainda que o Governo Federal, desde o governo Temer, tem realizado apenas audiências em cidades que só beneficiam os apoiadores da ferrovia e desrespeitam os protocolos de consulta dos povos.

A acusação destacou que a consulta prévia, livre e informada é uma obrigação do Estado brasileiro, visto que é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, que foi incorporada ao ordenamento interno pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Este dispositivo determina que a consulta deve se dar nos moldes políticos dos povos e comunidades tradicionais, as quais têm o direito de consentir com ou a vetar a proposta apresentada e seu posicionamento deve ser respeitado pelo Estado e pelos empreendedores.

Estudos falhos não dão dimensão dos impactos socioambientais

O tribunal também pontuou que os estudos que tentam viabilizar a Ferrogrão são, na verdade, falhos por não considerar devidamente os impactos sobre populações locais, inclusive povos indígenas em isolamento voluntário. Além disso, os estudos também ignoram a relação da ferrovia com a expansão da fronteira agrícola e da mineração na região, e não avaliam os efeitos sinérgicos e cumulativos de diversos projetos no mesmo território, a exemplo da BR-163, a estação de transbordo em Matupá, terminais portuários, hidrovias e hidrelétricas existentes e planejadas na bacia do Tapajós.

Violação dos Direitos da Natureza

Além dos direitos originários, o projeto da ferrovia também viola os direitos da natureza, principalmente nos biomas Amazônia e Cerrado. Inúmeros estudos demonstram que a Ferrogrão irá aumentar o desmatamento, por conta da desflorestação necessária para a construção da ferrovia e, também,  pelo favorecimento da expansão da produção de commodities agrícolas na região. Além disso, com a Ferrogrão, as emissões de carbono serão intensificadas em 75 milhões de toneladas ao contribuir diretamente para o desmatamento de mais de 2 mil km² de floresta nativa. 

Conflitos de Terra, Desmatamento e Queimadas

Apesar do projeto estar apenas no papel, os impactos já são sentidos na região. Os moradores das áreas próximas à região da BR-163, onde está prevista a ferrovia, afirmam que o anúncio da Ferrogrão, com sua inclusão no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) em 2016 e no Plano Nacional de Logística (PNL) em 2020 tem contribuído para o aumento da especulação fundiária, grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e conflitos fundiários, além de prejudicar a governança territorial da região do Corredor Tapajós-Xingu.

Financiamento da Ferrogrão

Os participantes do “tribunal” acusam também as empresas transnacionais Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi - idealizadoras do projeto e cúmplices de suas violações - , de visar apenas o aumento de seus lucros ao querer facilitar e ampliar o transporte de commodities agrícolas para exportação.

Sobre a Ferrogrão

O referido projeto foi idealizado por um grupo de tradings do agronegócio (Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi) em 2014, quando o processo de pavimentação da BR-163 já estava em fase avançada. O projeto ganhou tração com Michel Temer e se tornou prioridade no governo de Jair Bolsonaro, estando sob análise do Tribunal de Contas da União (TCU) desde 2020.

Trata-se de um projeto de 933 km de ferrovia que seguiria o percurso da BR-163 e de parte da Transamazônica, ligando Sinop, no norte de Mato Grosso e o distrito de Miritituba, na margem direita do rio Tapajós, no Estado do Pará. O objetivo primordial é baratear o escoamento da produção agrícola na região, visando ampliar a produção e exportação de soja e milho no âmbito do Corredor Logístico Norte - cujos portos, hidrovias, e rodovias já acumulam passivos e graves violações aos direitos humanos e direitos da natureza.

Para viabilizar a obra, uma Medida Provisória editada por Temer pretendeu excluir cerca de 862 hectares do Parque Nacional do Jamanxim, uma grande e importante área de preservação ambiental onde povos indígenas da região desenvolvem seus modos de vida e possuem vínculos ancestrais. Esta medida ensejou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.553 no Supremo Tribunal Federal, a qual resultou, em 2021, em uma liminar que suspendeu o desenvolvimento do projeto. 

Em maio de 2023, no entanto, o Ministro Alexandre de Moraes autorizou a retomada dos estudos sobre a Ferrogrão e recomendou um processo de conciliação, propiciando um ambiente mais favorável ao projeto. Setores do governo Lula defendem a Ferrogrão, e recursos para seus estudos foram assegurados pelo novo Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC), publicado em agosto de 2023. No mesmo mês, o presidente da Cargill no Brasil, Paulo Souza, declarou que “Não dá para ser contra o Ferrogrão. É uma irresponsabilidade”.


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