Música
Há artistas que constroem sua identidade a partir de um nome, e há aqueles cujo nome é uma metáfora viva do que são. João Urubu pertence ao segundo grupo e o apelido curioso — e marcante — não é mero recurso de marketing: “Urubu não é um animal que necessariamente se quer ter por perto, né? Mas eles têm uma função ambiental completamente necessária, são os lixeiros… sempre me encantou a maneira como eles pegam as correntes quentes de ar e planam. É um voo despretensioso tão bonito”, explica. Mais que um nome, é uma metáfora para o modo como ele enxerga a arte: flutuando entre correntes, captando beleza no inesperado.
Esse fascínio pelo voo livre e silencioso parece atravessar tudo que João cria. A música chegou cedo, ainda na adolescência. “Escrevo e componho desde muito novo, sempre foi um processo de sobrevivência, escrever pra viver ou pra morrer melhor. (...) mas confesso que me entender enquanto músico é algo complexo e confuso pra mim. Acho que sou mais compositor que músico — se é que isso faz sentido. Compor, escrever, sempre esteve num lugar muito profundo de cura.”
A fotografia, curiosamente, nasceu de um momento íntimo e familiar: o nascimento da filha, Elena. E, como tudo em João, não veio sozinha. Carregou junto a bagagem musical, as conexões com artistas, a sensibilidade para traduzir som em imagem. “Comecei fotografando músicos, amigos, gente que já conhecia da música. Era como um exercício: transformar aquilo que ouvia em algo que se pudesse ver.”
Hoje, ao comparar as duas linguagens, João não hesita: prefere fotografar. “Sinto que ainda tenho algum controle sobre os processos. Cantar já me desestrutura, me transporta pra fora de mim. Só sei cantar assim.” Mas, se há controle na fotografia, ele não é absoluto. Ao falar do próprio estilo, seu pensamento mergulha fundo: “Tô faz 8 anos brigando muito entre retrato e registro — são conceitualmente completamente opostos. Mas, dentro de uma abordagem fenomenológica existencialista, existe uma ponte entre o se preparar pra ser e o ‘estar pronto’ pro acaso. Essa ponte consegue coadunar com ambas abordagens fotográficas. Acho que por isso minhas fotos têm esse cheiro, esse aspecto íntimo. E, no fim das contas, talvez seja menos sobre mim e mais sobre quem eu registro.”
Suas influências artísticas são vastas e não obedecem a fronteiras de gênero. Do forró universitário dos Barões da Pisadinha ao cancioneiro sofisticado de Chico Buarque, passando por Mozart e Chopin, João consome sons com a mesma liberdade com que lê, assiste ou observa. “Referência é tudo que atravessa — que faz mal, que faz bem. Tudo tem poder mutante.”
Momentos marcantes não faltam. Como fotógrafo, destaca o registro de Chico César e trabalhos com mestres marajoaras como Cilene e Ronaldo Guedes, além da direção visual de discos e clipes para artistas consagrados e emergentes. Como músico, carrega com orgulho a direção do espetáculo “Em Nome da Rosa”, reunindo nomes de peso da cena cultural paraense e celebrando a obra poética e musical de sua amiga Rosa Watrin.
Equilibrar as duas carreiras, ele garante, é mais necessidade que desafio. “Não é fácil ser artista autoral no Brasil distópico em que vivemos.” E, ainda assim, segue inventando: prepara sua primeira exposição individual para dezembro, um trabalho inédito, e um show intimista, apenas voz e violão, no Na Figueredo, dia 29 de agosto.
Ao fim da conversa, deixa um recado que parece valer para arte, para a vida e para qualquer voo: “Faça durante. O tempo todo é processo. Ame com força.”
Entre o clique e a nota, João Urubu continua a planar — como o pássaro que lhe empresta o nome —, sem esforço aparente, mas com a precisão de quem sabe que a arte, como o voo, é feita de correntes invisíveis que sustentam quem ousa atravessá-la, como quem sabe que o voo, mais que destino, é a própria existência.