Cultura
Belém, outubro de 2025 – Em um país marcado por cicatrizes de autoritarismo e renascimentos democráticos, o cinema brasileiro emerge não apenas como espelho, mas como arma de resistência. De 23 a 31 de outubro, o Museu da Imagem e do Som do Pará (MIS-PA), no coração do Centro Cultural Palacete Faciola, acolhe a segunda edição da Mostra Itinerante "A Cinemateca é Brasileira – Resistências Cinematográficas", uma iniciativa da Cinemateca Brasileira que transforma a tela em palco para narrativas de luta, memória e superação. Gratuita e aberta ao público, a programação reúne 13 longas-metragens e sete curtas, curados para ecoar os 60 anos do golpe militar de 1964, sem cair no didatismo, mas celebrando a vitalidade criativa que desafiou silêncios impostos.
"A Mostra Itinerante ‘A Cinemateca é Brasileira’ é uma celebração vital da nossa memória cultural e resistência, trazendo à tona narrativas que resgatam a força do cinema nacional e conectam Belém a um legado de luta e criatividade, ressalta Indaiá Freire, diretora do MIS/PA"
Lançado em 2023 para resgatar acervos ameaçados e modernizar a maior coleção audiovisual da América do Sul, com mais de 40 mil títulos e 1 milhão de documentos. "É um gesto de preservação que conecta o passado ao presente, permitindo que gerações dialoguem com as vozes que resistiram à ditadura", afirma César Turim, curador e gerente de difusão da Cinemateca. Em Belém, a exibição ganha contornos locais: o auditório Eneida de Moraes, torna-se epicentro de uma reflexão que ressoa com as lutas amazônicas por identidade e autonomia.
A curadoria, sensível e provocadora, traça um arco temporal que vai de 1929 a 2021, mesclando ficção, documentário e animação para desvelar camadas da "vocação democrática" brasileira. A mesa de abertura, no dia 23 às 15h, com Guiomar Guimarães, abre portas para debates sobre o papel do cinema na construção de narrativas coletivas. Logo em seguida, curtas como Arara: Um Filme Sobre um Filme Sobrevivente (2017, Lipe Canedo), que resgata um registro raro de tortura na formatura da Guarda Rural Indígena em Belo Horizonte (1970), e Torre (2019, Nádia Mangolini), sobre vigilância estatal, estabelecem o tom: o cinema como ato de memória insurgente.
Longas icônicos seguem o fluxo. Terra em Transe (1967, Glauber Rocha), exalado às 19h do dia 24, é o manifesto do Cinema Novo – uma alegoria alucinada de um Brasil fictício devorado pela corrupção e pelo autoritarismo, filmada na Bahia com ecos de realidades paraenses. No dia 25, ABC da Greve (1979-80, Leon Hirszman) documenta a efervescência operária paulista contra a ditadura, enquanto Cabra Marcado para Morrer (1964, Eduardo Coutinho) – em cópia restaurada – reconta a saga interrompida de um camponês fuzilado, simbolizando o cinema engajado que sobreviveu à censura. A programação culmina em O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006, Cao Hamburger), uma visão infantil e terna da repressão em 1970, e Meu Tio Matou um Cara (2021, Ducca Rios), que injeta humor negro em traumas familiares, provando que a resistência evolui para formas contemporâneas de catarse.
Mas o que torna essa mostra conceitualmente potente não é só o repertório – que inclui raridades como A Opinião Pública (1966, Arnaldo Jabor), sátira à mídia manipuladora, e Os Fuzis (1964, Ruy Guerra), sobre motins militares no sertão – é sua itinerância como ato político. Após percorrer 26 cidades e impactar mais de 20 mil espectadores em edições anteriores, a mostra chega a Belém como ponte entre o Sul-Sudeste e a Amazônia, desafiando a centralização cultural. "Aqui, onde o rio encontra o mar e as narrativas indígenas se entrelaçam com o urbano, esses filmes nos convidam a resistir não só à memória seletiva, mas à indiferença cotidiana", reflete Marco Antônio Moreira, curador local do MIS-PA. Em um 2025 marcado por debates sobre fake news e polarizações, a exibição de *O Que É Isso, Companheiro?* (1997, Bruno Barreto), indicado ao Oscar, questiona: como o sequestro de um embaixador em 1969 expôs as contradições do regime?
Ao unir clássicos do Novo Cinema e produções recentes, a mostra não romantiza a dor: ela a transforma em ferramenta pedagógica, acessível e urgente. Para o público paraense, é chance de redescobrir ícones nacionais – de Glauber a Coutinho – sob lentes locais, fomentando diálogos sobre repressão indígena, greves ribeirinhas e identidades periféricas. Como bem resume o Viva Cinemateca: "Preservar o cinema é preservar o Brasil". Gratuitas, as sessões no Palacete Faciola não são mero entretenimento; são convites à ação, provando que, 60 anos após o golpe, as resistências cinematográficas seguem vivas, projetando luz sobre sombras que insistem em voltar.
Programação de Filmes
26-28 de outubro:
26 OUT | 15H: A Opinião Pública (1966, Arnaldo Jabor / 72 min.)
- 17H: Cidade Bolhosa (2009, Chaim Litewski / 53 min.)
- 19H: O Que É Isso, Companheiro? (1997, Bruno Barreto / 95 min.)
- 27 OUT | 19H: Manhã Cinzenta (1989, Olney São Paulo / 18 min.) | Pra Frente Brasil (1982, Roberto Farias / 110 min.)
- 28 OUT | 19H:*A Libertação de Inês Etienne Romeu (1979, Norma Bengell / 11 min.) | Os Fuzis (1964, Ruy Guerra / 84 min.)
Coluna 2 (23-25 de outubro):
- 23 OUT | 15H: Mesa de Abertura Guiomar Guimarães | Arara: Um Filme Sobre um Filme Sobrevivente (2017, Lipe Canedo / 19 min.)
- 19H: Torre (2019, Nádia Mangolini / 19 min.) | Greve de Canudos (1989, João Batista de Andrade / 37 min.)
- 24 OUT | 15H: A Luta do Povo (1980, Renata Topor / 30 min.)
- 19H: Terra em Transe (1967, Glauber Rocha / 107 min.)
- 25 OUT | 15H: ABC da Greve (1979-1980, Leon Hirszman / 34 min.) | Copa Marcada (1984, Eduardo Coutinho / 119 min.)
- 17H: Cabra Marcado para Morrer (1964, Eduardo Coutinho / 119 min.) [nota: repetição possível de título, mas como "cópia restaurada"].
- 19H: O Caso dos Irmãos Naves (1967, Luiz Sergio Person / 92 min.)
(29-31 de outubro):
- 29 OUT | 19H: Valsa Comum (1994, João Godoy / 32 min.) | Jardim de Guerra (1968, Neville d'Almeida / 90 min.)
- 30 OUT | 19H: Eles Não Usam Black-Tie (1981, Leon Hirszman / 123 min.)
- 31 OUT | 19H:*O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006, Cao Hamburger / 90 min.) | Meu Tio Matou um Cara (2021, Ducca Rios / 83 min.)
Serviço:
Local: Palacete Faciola
Endereço: Av. Nazaré, 138 esquina com a Rua Dr. Moraes
Bairro de Nazaré - Belém