Cultura
Foto: Divulgação
Belém viveu, na noite de ontem, um daqueles raros momentos em que a arte ultrapassa o palco, o repertório e até mesmo o tempo. O Theatro da Paz, nosso templo da música, testemunhou um encontro que costurou Brasil, África, Europa e — por que não? — o cosmos inteiro, numa apresentação que ficará marcada como uma das mais impactantes desta edição do Amajazzon.
O espetáculo Für Elis reuniu três forças artísticas singulares: Uriel Herman, pianista húngaro-israelense em ascensão no circuito europeu, conhecido por suas improvisações que mesclam jazz contemporâneo e música clássica; Lenna Bahule, cantora e compositora moçambicana, referência no African Jazz e pesquisadora de polifonias; e o percussionista Matchume Zango, mestre da timbila — instrumento tradicional de Moçambique reconhecido pela UNESCO. Mas o que se viu no palco foi muito mais que um encontro técnico: foi uma noite de encantamento.
Uriel Herman e o momento “Amadeus” da noite
Em determinado ponto do concerto, o pianista Uriel Herman evocou uma das cenas mais icônicas do filme Amadeus. Na obra, Mozart ouve pela primeira vez uma música composta por Salieri e, sem sequer consultar a partitura, a reproduz ao piano, adicionando variações tão brilhantes que deixam a corte boquiaberta.
Herman recriou essa atmosfera ao tomar para si um dos maiores clássicos brasileiros: “Carinhoso”, de Pixinguinha.
Após introduzir o tema com suavidade, ele começou a tecer variações complexas, modulando harmonias, reconstruindo a melodia e redescobrindo o choro com linguagem jazzística. O público ficou estático, atônito, testemunhando um feito raríssimo: um estrangeiro incorporando Pixinguinha com alma, técnica e ousadia. Foi um daqueles instantes que justificam uma vida inteira dedicada à música.
A força ritual da voz de Lenna Bahule
Quando Lenna Bahule entrou em cena. Sua voz — de potência ritual, ancestral e envolvente — parecia colocar o Theatro da Paz inteiro em transe.
A escolha de reinterpretar Elis Regina de forma nada convencional levou a plateia a uma viagem transcendental “que só a música pode proporcionar”
Em um momento particularmente hipnótico, a cantora conduziu todos a cantar em uníssono: começou como um sussurro… e, pouco a pouco, o teatro inteiro estava tomado pelo canto coletivo.
Como surpresa adicional, Bahule convidou ao palco a cantora performática de Manaus Tainá e i o u, trouxe energia e irreverência ao interpretar outra canção popularizada por Elis Regina. Com um instrumento que lembrava um espécie de apito artesanal, Tainá homenageou Hermeto Pascoal, arrancando risos, aplausos e aquele clima de festa que transforma o Da Paz em algo ainda maior que ele mesmo.
Diálogos musicais que emocionam
Outro dos grandes momentos da noite foi a participação de Robenare, músico paraense e professor da Escola de Música da UFPA. Ao lado de Uriel Herman, formou-se no palco uma química instantânea, descrita como “um show magnífico de sintonia e empatia”
A conexão entre o piano europeu e a sensibilidade amazônica de Robenare gerou improvisos arrebatadores que provocaram aplausos longos, daqueles que parecem querer prolongar o instante.
A timbila que rasgou fronteiras
Quando Matchume Zango surgiu com sua timbila — instrumento ancestral moçambicano — o espetáculo alcançou outra dimensão. Seu som percussivo, hipnótico e melódico ao mesmo tempo, elevou ainda mais o nível artístico da noite. O público assistiu maravilhado à fusão entre timbila, piano e voz africana, resultando em peças que ressoavam como celebrações comunitárias.
No grande final, Bahule, Zango e Herman tocaram músicas tradicionais de Moçambique, transformando o Theatro da Paz em uma só vibração. A plateia inteira cantou junto novamente, encerrando o espetáculo em clima de uníssono — “numa noite mágica, que entorpeceu a todos com música brasileira, africana e, quiçá, interplanetária”
Uma noite para entrar na história do Amajazzon
Misturando Elis Regina, Pixinguinha, Hermeto Pascoal, polifonias africanas, jazz europeu, improvisação clássica e tradições moçambicanas, Für Elis comprovou que a música não tem fronteiras — ela cria pontes. Belém viveu uma experiência estética rara, daquelas que renascem na memória cada vez que a gente respira fundo e lembra: “Eu estava lá.”