Amazônia
Foto: Acervo/ CIFOR-ICRAF
O Manejo Florestal Comunitário e Familiar (MFCF) não é apenas uma alternativa de uso da floresta: é uma estratégia central para a agenda climática brasileira, para a sociobioeconomia amazônica e para a justiça socioambiental. Este é o recado do documento de posicionamento “Manejo Florestal Comunitário e Familiar para o Bem-Viver Amazônico e Climático”, lançado no dia 19 de novembro, durante o painel “Floresta é alimento, casa e saúde: Manejo Florestal Comunitário e Familiar para o Bem-Viver Amazônico”, realizado na AgriZone, espaço oficial da COP30, em Belém.
Assinado por CIFOR-ICRAF Brasil, Instituto Floresta Tropical ‘Johan Zweede’ (IFT) e Embrapa Amazônia Oriental, o documento reúne evidências técnicas, dados atualizados e recomendações de políticas públicas que colocam o MFCF no centro das negociações climáticas em curso na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.
“Nenhuma estratégia climática será bem-sucedida sem a participação ativa de povos tradicionais, comunidades locais e famílias agricultoras na governança e implementação das ações. O MFCF é uma das respostas mais concretas que o Brasil já tem em curso para manter a floresta em pé com protagonismo local”, resume Alison Castilho, do CIFOR-ICRAF Brasil, mediador do painel.
MFCF: solução climática que nasce nos territórios
O documento define o Manejo Florestal Comunitário e Familiar como uma estratégia integrada de conservação e uso sustentável das florestas, protagonizada por povos tradicionais, comunidades locais e famílias agricultoras. Ao combinar direitos territoriais, governança multissetorial e saberes tradicionais com técnicas de baixo impacto, o MFCF fortalece a autonomia das comunidades, conserva a sociobiodiversidade e assegura serviços ecossistêmicos essenciais.
Na Amazônia brasileira, o MFCF ocorre em territórios como reservas extrativistas, florestas nacionais, reservas de desenvolvimento sustentável e assentamentos diferenciados, em sistemas de uso múltiplo que envolvem madeira, produtos florestais não madeireiros e outras atividades sustentáveis.
Autores da publicação lembram que 46% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil estão relacionadas ao desmatamento, à degradação florestal e às queimadas, e que o MFCF contribui diretamente para uma economia de baixo carbono ao reduzir a pressão por conversão de uso da terra e ao manter a floresta em pé com uso responsável.
Um potencial de 37 milhões de hectares para o bem-viver amazônico
O posicionamento destaca que a Amazônia brasileira reúne cerca de 37 milhões de hectares de florestas em áreas de uso coletivo com viabilidade social, técnica e econômica para o MFCF – o equivalente a 96% do território da Noruega. Esse mosaico inclui unidades de conservação de uso sustentável, assentamentos de reforma agrária (convencionais e diferenciados) e territórios quilombolas.
Apesar desse potencial, menos de 10% dessas áreas possuem planos de manejo florestal sustentável aprovados e ativos. Estudos econômicos citados no documento indicam que o MFCF pode alcançar rentabilidade líquida superior a R$ 1.000 por hectare mantendo até 90% da cobertura florestal original, consolidando-se como uma das principais estratégias de desenvolvimento de baixo carbono na região.
“Existem dezenas de milhões de hectares de florestas em territórios comunitários na Amazônia que podem fornecer de um terço até metade da demanda regional por madeira sustentável. Estamos falando de áreas que, em grande parte, estão na fronteira ativa de degradação. Fortalecer o MFCF é criar um cinturão de proteção para frear o desmatamento e, ao mesmo tempo, gerar renda e reduzir desigualdades”, avalia Marco Lentini, secretário executivo do IFT.
Vidas transformadas pela floresta manejada
Diretamente da Reserva Extrativista Arióca-Pruanã, no Pará, a manejadora comunitária Karolina Paz Matos levou à AgriZone o testemunho de quem vive o MFCF no cotidiano. “O manejo florestal comunitário e familiar é transformador de vidas. Na nossa Resex, muitas famílias que dependiam da comercialização de madeira ilegal hoje têm outra visão de mundo e de sustento. Participamos de todas as etapas da exploração, dentro da lei e em conformidade com os órgãos ambientais. Isso gera renda, fortalece a organização comunitária e mostra que é possível conciliar trabalho digno e floresta em pé”, afirmou.
Karolina destaca que o manejo madeireiro comunitário também abre caminho para jovens e mulheres: “O manejo cria oportunidades de aprendizado e visibilidade para quem antes não aparecia. Jovens e mulheres passaram a atuar em atividades de campo, gestão e tomada de decisão. Quando o povo se une, planejando e organizando o uso do território, a gente descobre que pode revolucionar o mundo a partir da nossa própria floresta”, completou.
Mulheres, governança e justiça climática
O posicionamento também reforça que o MFCF fortalece a liderança de mulheres e a participação social nas decisões, ampliando a resiliência comunitária frente às crises climáticas.
Para Ana Luiza Violato Espada, do Conselho Diretor da Rede Mulher Florestal e coautora da publicação, reconhecer esse protagonismo é condição para uma transição climática justa: “As mulheres já manejam as florestas há muito tempo, mas ainda são minoria nos espaços de decisão coletiva. Quando elas participam da gestão do território, a coletividade se fortalece e o manejo se torna mais inovador, cuidadoso e resiliente. Não há justiça climática sem justiça de gênero: a floresta em pé depende de gente em pé – e mulheres em pé, com voz e autonomia, são defensoras fundamentais dos territórios.”
Ana Luiza lembra que as mulheres têm papel histórico na manutenção dos territórios de uso coletivo e na transmissão de cuidados com pessoas e florestas. “O MFCF não é só uma prática produtiva. É um exercício de governança viva. Se queremos que essa política se consolide com impacto, precisamos investir em assistência técnica com enfoque de gênero, fortalecer as organizações comunitárias e reconhecer o trabalho invisível das mulheres, que sustentam a base dessa governança”, finaliza.
Biodiversidade e Saúde Única: florestas saudáveis, pessoas saudáveis
Ao aproximar manejo florestal, conservação da biodiversidade e saúde, o documento dialoga com a abordagem de Saúde Única (One Health), que reconhece a interdependência entre saúde humana, animal, vegetal e ambiental. “Planos de manejo bem elaborados, com inventário florestal de qualidade e identificação correta das espécies, mantêm os processos ecológicos, garantem a reprodução das árvores e a continuidade dos serviços ecossistêmicos prestados por polinizadores e dispersores de sementes”, explica Milton Kanashiro, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental.
Segundo ele, florestas bem manejadas reduzem riscos de novas zoonoses e outras doenças relacionadas à degradação ambiental: “Quando a floresta está saudável, ela protege as pessoas, os animais e os ecossistemas. Em um contexto de mudanças climáticas e eventos extremos, investir no MFCF é também investir em saúde pública e prevenção de crises sanitárias futuras”, disse.
Cinco pilares para colocar o MFCF no centro da COP30
O posicionamento interinstitucional traduz a experiência acumulada de quase três décadas de MFCF em cinco pilares essenciais para orientar decisões de governos, negociadores da COP30, setor privado e sociedade civil:
1. Políticas públicas integradas e marcos regulatórios
Retomar e fortalecer a Política Federal de MFCF;
Inserir o manejo comunitário nos principais planos e estratégias de sociobioeconomia;
Revisar normas com ampla participação social, adequada às realidades culturais dos territórios.
2. Investimentos e acesso a crédito
Criar editais específicos e linhas de crédito adequadas ao MFCF;
Apoiar infraestrutura, equipamentos e capacitação em gestão para empreendimentos comunitários.
3. Assistência técnica e fortalecimento de capacidades
Implementar programas contínuos de ATER florestal;
Investir em organizações comunitárias de referência;
Garantir inclusão ativa de mulheres e jovens na assistência técnica e nos espaços de decisão.
4. Escala de produção e competitividade de mercado
Ampliar compras institucionais de madeira oriunda de planos de manejo comunitário;
Fortalecer a fiscalização e o combate à madeira ilegal;
Apoiar a industrialização sustentável na própria Amazônia.
5. Conservação da biodiversidade e Saúde Única
Reconhecer o MFCF como estratégia estruturante de conservação da biodiversidade;
Integrar a abordagem de Saúde Única às políticas florestais;
Valorizar o uso múltiplo da floresta e os serviços ecossistêmicos associados.
Belém pode marcar o compromisso global de alinhar produção florestal comunitária, conservação da biodiversidade e equidade em uma agenda climática de resultados concretos e permanentes. O sucesso da COP30 dependerá da capacidade de direcionar recursos da economia fóssil para soluções baseadas na natureza, e o MFCF é uma dessas soluções centrais”, reforça o documento.
Sobre a publicação
Título: Manejo Florestal Comunitário e Familiar para o Bem-Viver Amazônico e Climático
Autoria: Ana Luiza Violato Espada, Alison Castilho (CIFOR-ICRAF), Marco Lentini (IFT), Milton Kanashiro (Embrapa Amazônia Oriental) e Domingos Macedo (CIFOR-ICRAF).
Instituições signatárias: CIFOR-ICRAF Brasil, Instituto Floresta Tropical ‘Johan Zweede’ (IFT) e Embrapa Amazônia Oriental.
O documento foi elaborado como posicionamento técnico interinstitucional para subsidiar debates e negociações na COP30 e está disponível, na íntegra, no site do CIFOR-ICRAF. Clique aqui e baixe a públicação.